segunda-feira, 21 de abril de 2014

BOGOMILOS CRISTIANISMO ORIGINAL


“Quando surgirá a aurora?
O nascimento do dia em que a humanidade haverá de se voltar para a luz
interior, a luz da verdade? Quando tiver vontade...?
Mas, enquanto espero, quero me esforçar como se esse dia já tivesse chegado.”

Zoroastro

"A tolerância é uma virtude mais social do que religiosa”, afirma Steven Runciman, especialista em história dos bogomilos.
“Uma atitude tolerante em relação às crenças alheias contribui sem dúvida para uma sociedade harmoniosa; porém essa atitude é impossível para os que possuem uma forte convicção religiosa.
Porque quando estamos convictos de ter encontrado a chave e o sentido supremo da vida, não
conseguimos admitir que nossos irmãos continuem tateando às cegas na escuridão.
Podemos reconhecer que, mesmo sem essa chave, eles possam conduzir suas vidas de maneira virtuosa e admirável, mas seu fardo será, a nosso ver, desnecessariamente pesado; é nosso dever ajudá-los a encontrar o verdadeiro caminho e mostrar-lhes a luz que os libertará.
As opiniões divergem quanto à natureza da ajuda que deve ser prestada: se a persuasão pacífica e um exemplo luminoso, ou a espada e o auto-de-fé.”
O autor conclui que “nenhuma pessoa religiosa de fato aceita abandonar um descrente à própria sorte”.
Poderíamos acrescentar que, quando outros interesses como poder, prestígio e riqueza começam a desempenhar seu papel, essa convicção religiosa se torna ilegítima.
Então, muitos indivíduos e até mesmo populações inteiras são sacrificados, territórios são devastados e reduzidos a cinzas, cidades são arrasadas.
Esse foi o pano de fundo do drama dos bogomilos, denominação coletiva de vários grupos, bastante diferentes entre si, que tinham em comum a aversão por um sistema religioso centralizador que sufocava sua vivência individual da espiritualidade e aniquilava sua liberdade pessoal.
O período histórico a que nos referimos é designado com razão como “a idade das trevas”.
Em decorrência da arbitrariedade política e da mobilização fanática, movimentos como os paulicianos, os bogomilos, os patarinos e os cátaros foram sistematicamente perseguidos, entre os anos 717 e 1244, e aniquilados.
É surpreendente que, a cada nova onda de violência, ainda se ouvisse o antigo brado contra os “maniqueístas”, o grito de medo da aliança secular entre Igreja e Estado, que temiam perder seu poder e influência.
A Igreja gnóstica universal. Esse espetáculo foi presenciado pela humanidade repetidas vezes. No século II, Marcião fundou uma igreja gnóstica universal, que pregava o conhecimento das duas ordens de natureza.
Dezenas de milhares de pequenas igrejas foram destruídas na tentativa de apagar qualquer lembrança da vida original. A seguir, foi a vez de Mani, o apóstolo persa do Mestre Jesus, o Cristo.
Entre os séculos III e VI, seus discípulos se disseminaram por grande parte da Europa, da Ásia e até mesmo da China. Eles também foram exterminados.
Desde então, todos os grupos heréticos são chamados de maniqueístas.
As relações entre Mani e sua Igreja de Luz e os bogomilos são comprovadas por dois fatos históricos: os escritos gnósticos remanescentes, que foram preservados até os dias de hoje, e as tradições vivas, certamente malvistas pela Igreja oficial, que resistiram à queda do império greco-bizantino.
Os messalianos, por exemplo, davam grande valor à iniciação e ao preceito de uma vida pura.
Na melhor tradição gnóstica, eles se denominavam “portadores do Espírito” ou pneumatistas.
Outra tradição viva foi a preservada pelos discípulos de Paulo de Samósata, que se tornaram conhecidos como paulicianos. Paulo de Samósata ensinava que todos os seres humanos possuem o mesmo princípio divino em comum, e que homens e mulheres devem desempenhar papéis de igual importância tanto nos serviços religiosos como na sociedade.
As marcas deixadas às margens do tempo não são de leitura fácil.
Muitas das que não foram entalhadas na pedra desapareceram para sempre. Observamos, com
nosso olhar contemporâneo, a difícil convivência entre povos antigos que nos deixaram testemunhos escassos e de difícil interpretação.
Nossa compreensão da História é limitada por nosso estado de consciência atual, pelas normas em geral hoje aceitas, pelos juízos de valor, regras de comportamento e tabus.
O cristianismo original traz, a cada época, um ensinamento vivo e atual, uma filosofia que dá testemunho da luz e pode ajudar os que buscam a verdade a encontrar o caminho de retorno à origem divina.
É importante salientar que nenhuma perseguição religiosa jamais impediu que esses ensinamentos voltassem a se manifestar.
Eles renascem através dos tempos, pois emanam da profunda intuição e sensibilidade dos que se
predispõem a recebê-los.
Para tanto, o conhecimento histórico é irrelevante.
Os vestígios desses “ensinamentos da Luz” encontrados na areia podem nos revigorar.
Eles fortalecem nossa ligação com os inúmeros homens e mulheres que nos precederam.
Por mais triste que seja sua história, sentimos alegria e esperança quando reconhecemos que o mundo divino não nos abandona, que sempre renova seu chamado, e que várias Tradições gnósticas e muitos indivíduos, já responderam a esse chamado.
Assim surgem novas oportunidades para os que buscam na religião uma via de libertação.
Os gnósticos ensinam, então, que todo indivíduo possui em si uma centelha de consciência divina, uma centelha do passível de ser inflamada, o que lhe permitirá reintegrar a origem.
Os gnósticos fundam escolas espirituais em um novo estilo onde os buscadores encontram um
sustentáculo na compreensão do caminho que leva à vida original, caminho esse descrito pela sabedoria universal em particular no Novo Testamento.
A Bulgária foi a porta por onde as doutrinas gnósticas entraram na Europa. Elas proliferaram durante séculos nos Bálcãs, porém a memória coletiva dos europeus não as conservou muito bem por várias razões.Apenas um pequeno número de pessoas se interessou de fato.
Agrupamentos conhecidos pelo nome genérico de bogomilos, do século IX ao século XIV, propagaram, portanto, um cristianismo diferente do cristianismo da Igreja romana, e que revelava a força libertadora da Gnosis às pessoas de todas as camadas sociais.
A antiga corrente do maniqueísmo, que se expandira no Oriente até a China e no Ocidente
até a Espanha, havia engendrado vários movimentos, dentre eles o dos bogomilos.
Nascido em solo búlgaro medieval, o bogomilismo trazia consigo todas as características de
sua época.
Não seguia nem imitava qualquer orientação conhecida até então. Nele se manifesta uma forte inspiração do cristianismo primitivo.
Em geral, as diferentes expressões do maniqueísmo medieval nos Bálcãs se esforçavam para
promover o impulso de Cristo puro e livre de todo dogmatismo.
Os bogomilos, bastante inclinados à liberdade, opunham-se às instituições feudais que
exploravam o povo.
Sua concepção espiritual e seu modo de vida, em total contradição com as autoridades religiosas e administrativas de seu tempo, exerciam grande força de atração sobre as classes médias balcânicas.
Mesmo em épocas de perseguição eles davam continuidade a suas atividades.
Seus dirigentes, em dado momento, entraram em contato com os cátaros da Occitânia, cuja influência se estendia sobre grande parte do norte da Itália, da Suíça e do norte da Espanha.
Essas correntes eram ramos da mesma árvore gnóstica, não idênticos, porém enraizados no mesmo solo.
O archote da Gnosis não cessa de ser levado adiante, seu fogo arde sem descanso ao longo dos
séculos. Ora ele arde com força, ora brilha secretamente, dependendo das circunstâncias. Muitos seres trilham o caminho e outros apenas têm como tarefa indicar a direção.
Seus nomes desaparecem nas areias da história, mas são inscritos de forma indelével no livro da Fraternidade da Luz, na corrente de todas as fraternidades que desde tempos imemoriais vêm realizando sua obra libertadora.
Em nossa época, os seres humanos se relacionam cada vez mais entre si, tanto interior como exteriormente. Muitos sabem, ou supõem de maneira inconsciente em seu íntimo, que a humanidade está decaída e que cada um deve encontrar e seguir o caminho da libertação. Eles se esforçam, pois, para realizar essa libertação em sua condição social e pessoal e, desse modo, obter uma ligação vivente com o divino.
“Sob o reino do [...] tsar Pedro (século X), um pope chamado Bogomilo
[...] foi o primeiro a pregar a doutrina herética na Bulgária [...]

Esta citação foi extraída de um tratado contra Bogomilo. O pouco que conhecemos dele provém quase que apenas dos escritos de seus inimigos. De acordo com um velho documento búlgaro, ele foi anatematizado duas ou três vezes, o que demonstra o quanto era temido pela Igreja oficial e a amplitude de sua influência: um movimento gnóstico inteiro levava seu nome.
Pelo fato de figurar na lista dos autores interditados, ele deve também ter propagado seu ensinamento por escrito. Ele é apresentado como um homem inteligente, muito audaz, que exercia grande autoridade sobre seus semelhantes.
Ele começou como padre ortodoxo e esteve muito próximo do povo, mas era totalmente contrário ao cristianismo oficial, em que rituais pretensamente sublimes representavam um grande papel e davam uma importância preponderante à forma.
Esse tipo de cristianismo estava muito distante da mensagem original: a necessidade de
adquirir uma fé viva para que, em todos os aspectos de sua existência, o ser humano ligue sua alma ao Espírito do reino dos céus.
Bogomilo não foi o único a perseguir esse objetivo. Ele não foi o fundador da assim chamada
Igreja dragoviciana, porém consideramo-lo o representante das doutrinas dessa Igreja, de alguns ensinamentos paulicianos e das concepções maniqueístas.
Ele juntou esses ensinamentos, que se tornaram conhecidos naquele tempo como Igreja búlgara e Igreja dragoviciana. Devemos ver isso na forma de duas correntes dirigentes no interior de uma grande rede de fraternidades isoladas que, partindo mais ou menos do mesmo ponto, procuravam viver de acordo com os mesmos princípios.
Disso, Bogomilo era o coração irradiante.
Assim como muitos outros, Bogomilo condenava a arbitrariedade da Igreja e do Estado e seu
sistema de opressão. Ele compartilhava as idéias de múltiplos grupos gnósticos que atuavam no sul dos Bálcãs, em particular a idéia da existência de dois campos de vida separados, o que formava o próprio coração de sua crença.
Ele considerava seus adeptos “theotokos”, ou seja, aqueles que devem “engendrar Deus”.
Ele chegou a formular o direito à liberdade e à salvação das almas injustiçadas e dos oprimidos que não tinham a possibilidade de se expressar.
Ele defendia a idéia de que existem dois princípios no ser humano, um terrestre e um celeste, e que o princípio celeste deveria sair vitorioso sobre o princípio terrestre. Lemos em um texto bogomilo:
O corpo que trazemos é uma criação das trevas, a alma que nele habita é o primeiro homem e
o germe da luz. O primeiro homem foi vitorioso no país das trevas, e também em nossos dias ele triunfará no seu corpo mortal. O Espírito vivente, que outrora irradiou sobre o primeiro homem, é, ainda hoje, nosso consolador, o “consolamentum”.
Não sabemos se Bogomilo caiu nas mãos de seus perseguidores ou se pôde continuar na
clandestinidade. Todos os seus testemunhos escritos foram manifestamente destruídos, porém não se conseguiu evitar as influências de seu ensinamento na literatura de seu tempo.
Os bogomilos mesclaram o essencial de sua fé na forma de mitos e de lendas com a literatura búlgara. Exemplos dessa fé podem ser encontrados nos contos, nos cânticos e nos poemas.
Na Bulgária em como em muitas partes da Europa e da Ásia, a sabedoria gnóstica floresceu
outra vez.
Esses movimentos desencadearam uma rebelião na Idade Média e obrigaram a Igreja da época a mostrar sua verdadeira face: uma instituição onde a religião estava ligada às autoridades e cuja reação contra os movimentos gnósticos de então constituiu um dos capítulos mais sombrios de sua história.
A luz sempre triunfará!
Os representantes da Igreja oficial qualificaram de dualista a doutrina pregada por Bogomilo. Os dogmáticos esforçavam-se para provar que esses pretensos heréticos tinham parte com as trevas em oposição ao reino de Deus.
Ora, a mensagem de todo sistema qualificado de gnóstico é que a luz triunfa sobre as trevas.
Contrário às várias insinuações, Bogomilo e seus numerosos partidários ensinavam que existia
apenas um princípio divino único, e que o dualismo apenas aparecera quando Satanael ou Demiurgo*, decidiu, contra o princípio divino original, criar seu próprio mundo, uma terra e uma humanidade, tornando-se assim o princípio mesmo do mal.
Trata-se, portanto, de um dualismo temporário, pois Satã será vencido pela luz e seu mundo desaparecerá.
O fato é que, na sombria dualidade, a unidade da luz é rompida, dividida em dois pólos opostos.
Isso não ocorreu apenas num passado longínquo, porém acontece diariamente e sempre.
A lei da dualidade, a dialética, nos acua e não cessa de nos importunar no espaço e no tempo até o momento em que acabamos por compreender que somos seus prisioneiros e que devemos nos libertar dela.
É preciso que a luz interior oculta, na qual reconhecemos a verdade, ponha-se a brilhar em nós de tal maneira que possamos rejeitar a ilusão da dualidade. Eis as palavras de uma antiga prece bogomila:
"Purifica-me, meu Deus,purifica-me no interior e no exterior.
Purifica corpo, alma e espírito, para que os germes da luz cresçam em mim e me
transformem num archote.
Transforma-me em flama que transmuda em luz tudo em mim e ao meu redor."

Platão utiliza a expressão Demiurgo em Timeu para designar o artesão que, reunindo os elementos do caos, modelou os aspectos do cosmo sobre os modelos das formas eternas e engendrou todas as coisas materiais do mundo, inclusive o corpo humano.
Ele não é o criador de tudo “a partir do nada”, porém o arquiteto que deu e adornou a forma do Universo.
Platão considera que o Demiurgo é a personificação da razão ativa, expressão retomada pelos gnósticos que, em sua visão do mundo dualista, fazem do Demiurgo o símbolo das forças não-divinas e o responsável pela criação do mundo material sempre movente e inconstante, ao lado da divindade só bem, “o estrangeiro suave”.
O livro secreto dos bogomilos é um diálogo entre Mestre Jesus, o Cristo e João, o “discípulo bem-amado”.
Os membros da Inquisição, que jamais viram essa obra, deram-lhe o nome de Livro secreto.
Apenas os perfecti o possuíam. Os especialistas o conhecem sob o nome de O livro de São João ou Pseudo-evangelho, do qual existem duas traduções em latim, datando a mais antiga do século XII. É muito provável que essa obra tenha sido escrita na Bulgária.

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