A Parábola do Filho Pródigo
Nossa breve jornada pelo cristianismo primitivo não foi motivada por saudosismo, nem pela intenção Deixemos que o evangelista nos conte, mais uma vez, sua linda mensagem de esperança para todos nós, peregrinos há muito desgarrados e humilhados em terra distante, que ansiamos voltar à Casa do Pai.
“Um homem tinha dois filhos. O mais jovem disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me cabe’. E o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, ajuntando todos os seus haveres, o filho mais jovem partiu para uma região longínqua e ali dissipou sua herança numa vida devassa. E gastou tudo. Sobreveio àquela região uma grande fome e ele começou a passar privações. Foi, então, empregar-se com um dos homens daquela região, que o mandou para seus campos cuidar dos porcos. Ele queria matar a fome com as bolotas (cascas) que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. E caindo em si, disse: ‘Quantos servos de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome! Vou-me embora, procurar o meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou mais digno de ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus empregados. Partiu, então, e foi ao encontro de seu pai. Ele estava ainda longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos. O filho, então, disse-lhe: ‘Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho’. Mas o pai disse aos seus servos: ‘Ide depressa, trazei a melhor túnica e revesti-o com ela, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o novilho cevado e matai-o; comamos e festejemos, pois este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi reencontrado!’ E começaram a festa. Seu filho mais velho estava no campo. Quando voltava, já perto de casa ouviu músicas e danças. Chamando um servo, perguntou-lhe o que estava acontecendo. Este lhe disse: ‘É teu irmão que voltou e teu pai matou o novilho cevado, porque o recuperou com saúde’. Então ele ficou com muita raiva e não queria entrar. Seu pai saiu para suplicar-lhe. Ele porém, respondeu a seu pai: ‘Há tantos anos que eu te sirvo, e jamais transgredi um só dos teus mandamentos, e nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos. Contudo, veio esse teu filho, que devorou teus bens com prostitutas, e para ele matas o novilho cevado!’ Mas o pai lhe disse: ‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso que festejássemos e nos alegrássemos, pois esse teu irmão estava morto e tornou a viver, ele estava perdido e foi reencontrado!” (Lc 15:11-32).
Para a maior parte dos cristãos, que por diversas vezes ouviram referências a essa parábola em sermões dominicais, a estória significa pouco mais do que a infinita generosidade do Pai, que recebe de braços abertos o filho pródigo que saiu de sua Casa para entregar-se à devassidão, dissipando sua herança. É mais uma lembrança de que o erro não compensa, mas que, em última análise, se tivermos a desgraça de cair no pecado (e quem não caiu incontáveis vezes?) podemos, por meio da verdadeira contrição, ser perdoados e recebidos de novo pelo Pai. Essa interpretação singela tem seus méritos e satisfaz a grande massa dos fiéis. Mas existe muito mais riqueza por trás dessa parábola, que é um verdadeiro exemplo de quantos ensinamentos podem estar velados na linguagem do simbolismo.
O respeitado pesquisador e autor Geoffrey Hodson afirma que essa parábola pode ser interpretada tanto do ponto de vista macro como do microcósmico, pois todas as alegorias apresentadas na Linguagem Sagrada são passíveis de diferentes níveis de interpretação. Isso deve-se a natureza essencial da unidade de toda a manifestação, desde o infinitamente grande até o infinitamente pequeno, tanto nos planos mais elevados como nos mais grosseiros. Esse é o sentido do homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. Visto sob outro ângulo, o homem é aquele ser em quem o espírito mais elevado e a matéria mais densa estão unidos pela mente.
Segundo aquele autor, a parábola do Filho Pródigo descreve, de forma simplificada, o processo cíclico de descida consciente da vida do Logos à matéria e seu eventual retorno à origem, à Casa do Pai, devidamente enriquecida pela experiência do processo, como simbolizado pela boa vinda concedida pelo Pai a seu filho. A parábola oferece um magnífico cenário, onde os atores e as principais etapas da jornada da alma, segundo a interpretação de G. Hodson, podem ser apresentados resumidamente da seguinte forma:
O Pai. Representa o eterno e infinito Genitor, do qual o temporário e o finito são gerados. Ele é causa primordial de toda a manifestação, sendo uma Existência ilimitada e incognoscível.
O Filho mais Velho. No sentido macrocósmico, personifica os elohim, as inteligências criadoras ou arcanjos, que nunca perdem a consciência da unidade com sua Fonte divina, permanecendo, portanto, em casa. No sentido microcósmico, representa a Centelha Divina no homem, ou a Mônada humana, que também permanece em unidade com a Fonte divina. As Mônadas são provavelmente os anjos que estão sempre voltados para a Divina Presença. O Filho Pródigo. Macrocosmicamente, representa o aspecto imanente do Logos, a vida divina interior que embarca na grande peregrinação pelos diferentes planos da manifestação. No seu sentido microcósmico, representa o raio projetado da Mônada que, no seu devido tempo, manifesta-se a nível da inteligência abstrata como a alma espiritual em sua veste imortal de luz, o Cristo interior. Ele é o Deus peregrino que habita no homem, seu Eu Superior, que passa por infindáveis experiências ao longo de suas muitas encarnações na Terra.
A Casa do Pai. A consciência do Logos do Universo (o Pai) está estabelecida em seu mundo espiritual mais elevado. Alegoricamente, o Pai permanece em casa com as inteligências criativas cósmicas, o filho mais velho. Essa é a residência celestial do ‘Pai que está nos Céus’.
Ele toma a sua parte da herança e parte em viagem. A ‘parte da herança’ representa a porção de vida cósmica alocada a uma unidade individual em manifestação. Esse evento é, às vezes, descrito como a ‘queda dos anjos’, dando uma conotação infeliz ao processo, pois a saída da Casa do Pai é uma parte essencial do Plano Divino. Um símbolo mais apropriado é a plantação de sementes, que são enterradas na escuridão do solo, de onde germinarão, no seu devido tempo, quando regadas com a água da vida e fortalecidas com a luz do espírito. Num sentido pessoal, a ‘herança’ refere-se aos poderes armazenados no Eu Superior. Quando o homem chega ao ‘país distante’, isto é, manifesta-se no mundo das formas, esses poderes serão expressos de inúmeras maneiras, algumas temporariamente infrutíferas, insatisfatórias, daí a parábola dizer que o filho dissipou a herança de forma ‘pródiga’.
A região longínqua. O país distante é o espaço virgem sobre o qual o novo Sistema Solar será construído, ou como diziam os gnósticos, o Grande Abismo. No sentido microcósmico, o país distante é o campo evolutivo, incluindo, portanto, os planos mental, emocional, etérico e físico, dos quais o corpo físico, por ser o mais denso, é geralmente tido como a prisão do Ego imortal.
Dissipar a herança. Refere-se à Eterna Oferenda pela qual o Logos sacrifica Sua essência espiritual para que Seu Universo possa existir. É a crucificação voluntária do Cristo cósmico, o Filho Pródigo. Como se trata de um processo de limitação da vida universal da Deidade do universo, vincula-se alegoricamente como a dissipação da herança.
Uma grande fome. No sentido macrocósmico, representa a inércia que resulta do equilíbrio temporário entre Espírito e matéria, quando é alcançado o ponto mais denso da manifestação. Microcosmicamente, refere-se à ausência de compreensão espiritual da mente concreta durante a etapa inicial da peregrinação da alma, quando não recebe conscientemente nenhum impulso espiritual, mas vive para a gratificação da personalidade de forma deliberadamente egoísta e sensual. Fome e sede são também símbolos do anseio pela verdade. Embora a fome e a sede físicas possam ter conseqüências desastrosas, a fome e a sede da alma são auspiciosas, pois representam o prelúdio da busca da verdade.
Ele se emprega para cuidar de porcos. O porco é um símbolo dos instintos e desejos mais baixos e sensuais do homem. Isso significa que o filho pródigo chegou ao fundo do poço da materialidade, sensualidade e depravação.
Ele alimenta os porcos. No sentido macrocósmico, a vida una (o filho pródigo) vitaliza as formas materiais grosseiras (os porcos). Sem essa alimentação interior eles morreriam de inanição (fome). De forma similar, a Mônada, como microcosmo, supre o poder e ‘alimenta’ espiritualmente a alma que, por sua vez, inspira e vitaliza a personalidade. Na aplicação pessoal do símbolo, alimentar os porcos significa dar energia vital para as tendências animalescas, indicativas da vulgaridade que ocorre no ponto mais denso da jornada evolutiva.
Ele queria matar a fome com as cascas jogadas aos porcos. As cascas são os revestimentos físicos exteriores, ou as formas temporárias. Comer cascas, então, simboliza existência e experiência no interior da forma externa mais densa. Para o intelecto humano, essa fase da jornada corresponde ao estágio evolutivo em que a mente é incapaz de apreender as idéias e verdades abstratas e espirituais, daí alimentar-se com as idéias concretas. A percepção de que as cascas, ou a natureza efêmera das formas exteriores, são inteiramente insatisfatórias produz um anseio pelas realidades permanentes interiores. Essa é a verdadeira ‘fome’ por Deus, o anseio da alma pela união com sua verdadeira Fonte.
Mas ninguém lhas dava. A fome ainda perdura. A descoberta da realidade pelo homem é acompanhada pela compreensão de que a fome da alma nunca poderá ser satisfeita por ‘comida’ do exterior, e que a peregrinação da alma não terminará enquanto houver dependência de apoios externos. Esse é também um indício da solidão do místico.
Os servos de seu Pai comem enquanto ele passa fome. O ciclo de descida à matéria está chegando ao fim, pois o filho pródigo pensa em seu lar. O místico, faminto por alimento espiritual, contempla a casa do Pai, os seres espirituais e as inteligências criativas, os servos do Supremo, que têm comida em abundância. O homem que começa a despertar espiritualmente, percebe lentamente que somente através do serviço ao próximo poderá encontrar o caminho de casa e trilhá-lo até o fim. Somente pelo serviço o homem pode tornar-se Senhor do Todo. Está implícita a necessidade de humildade e a subserviência da personalidade ao Eu espiritual.
Vou-me embora. Macrocosmicamente, o ponto mais baixo da involução foi atingido e a viagem de retorno começa. Microcosmicamente, o filho pródigo fala pela primeira vez, indicando que a vida universal no homem atingiu a autoconsciência e a individualidade, capacitando-o a entrar deliberadamente no caminho de retorno. Seu arrependimento expressa um estágio de maturidade no qual descobre que nenhum objeto exterior pode satisfazer espiritualmente a alma, ou ‘salvar’ qualquer ser humano. A busca da satisfação começa a ser direcionada para o interior e para cima. Simbolicamente, o filho pródigo arrepende-se de seus erros anteriores, descobre o verdadeiro caminho e começa a jornada de retorno.
E ele partiu e foi ao encontro de seu Pai. Ainda que a longa e árdua jornada de volta à casa do Pai não seja explicitada (a via normal ou o caminho acelerado), a meta é atingida finalmente. Tendo escolhido as realidades permanentes, o homem entra no Caminho do Discipulado e acelera a viagem. A ilusão da separatividade é superada, e a consciência universal, a condição da Casa do Pai, é atingida.
Seu Pai corre para recebê-lo, dando calorosas boas vindas e o beija. Quando o caminho de retorno é trilhado, num certo ponto ocorre um afluxo de poder divino. A partir de então, para cada passo que o aspirante dá em direção ao alto, seu Mestre dá dois passos em sua direção, alegoricamente seu Pai corre para abraçá-lo. No sentido iniciático, o beijo simboliza a descida da força monádica sobre o candidato, por meio da voz e do tirso do hierofante na iniciação. Nesse sentido, o beijo representa a união das energias com as energias espirituais no centro da cabeça do iniciado, conferindo iluminação.
O filho pródigo confessa ser indigno. A confissão metafórica revela que, quando o ciclo evolutivo está prestes a terminar, o peregrino compreende o quanto a descida à matéria macula a expressão do Espírito. Da mesma forma, quando o Eu Superior alcança um certo grau de autoconsciência e é capaz de transmitir esse fato à mente e ao cérebro do homem mortal, então a motivação e a conduta não-espirituais anteriores são deploradas e renunciadas. A adoção natural dessa atitude de reconhecimento, renúncia e entrega marca uma fase muito importante no desenvolvimento do homem.
O Pai disse: trazei a melhor veste. Vestimenta nova é símbolo de um estado de consciência renovado e expandido. A vestimenta existente expressa as limitações usuais da personalidade como egoísmo, preconceito, intolerância, cegueira espiritual e outros grilhões da mente, que devem ser descartados para que uma nova fase evolutiva possa ser adentrada. Geralmente, uma veste nova ou lavada significa um novo corpo para a consciência, uma vez terminada uma etapa de experiência de vida no mundo. Agora a Veste do Filho é do melhor tecido, o mais sutil, a veste de Luz, ou Manto de Glória.
O Pai disse: ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. O círculo (anel), é o símbolo da eternidade e do poder e sabedoria eternos. Um ciclo foi terminado, e o anel indica que outro deverá ser começado, pois a progressão cíclica não tem começo concebível nem fim imaginável. O anel simboliza também os poderes adquiridos com o término do ciclo anterior. A colocação de sandálias nos pés complementa o simbolismo do anel no fim de um ciclo. A substância macrocósmica, especialmente a mais densa, é comumente representada por calçados, pois esses são colocados na parte inferior do corpo. O Ser está agora capacitado a entrar num novo ciclo devidamente aparelhado. Ao lavar os pés de seus discípulos, Jesus pretendeu o mesmo significado. Os pés simbolizam a fundação da vida humana e das atividades diárias. Quando são purificados ou ‘lavados’ pela ação inspiradora e iluminadora do Princípio Crístico no interior de cada homem, então, é alcançada a autopurificação.
O novilho cevado. Simboliza o resultado do processo criativo. Macrocosmicamente, comer o novilho cevado indica a absorção na Fonte divina de todas experiências e poderes resultantes do processo de manifestação em seus ciclos involutivo e evolutivo. No homem, o microcosmo, o novilho é o símbolo da sabedoria intuitiva, que nasce da descida da vontade espiritual ao veículo da inteligência abstrata, onde reside a alma imortal. No sentido espiritual, o processo de comer o novilho cevado, assim como todo banquete, simboliza o estado de ‘plenitude’ que foi alcançado ao fim de um ciclo (como a última ceia do Senhor).
O irmão mais velho ficou com raiva. A suposta raiva do filho mais velho deve ser tomada como uma manobra proposital para não chamar a atenção dos profanos para a natureza mais profunda da sabedoria secreta, pois é inconcebível a inveja entre diferentes aspectos da natureza Divina. Microcosmicamente, os dois irmãos podem ser considerados como os dois aspectos da mente humana, abstrato e concreto. Quando ocorre a sublimação da mente concreta, após o seu mergulho na matéria, os dois aspectos da mente são unidos e tornam-se o princípio intelectual. Assim, é natural que no fim da grande peregrinação o filho mais novo e o mais velho sejam reunidos na casa do Pai.
Teu irmão estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi reencontrado! A parábola descreve estados de consciência. A morte, nesse caso, implica na completa, ainda que temporária, perda, pelo homem mortal, da experiência da natureza divina e imortal do verdadeiro Eu. A ressurreição, por outro lado, descreve o redescobrimento desse conhecimento da unidade. Estar perdido significa o estado mental de ilusão da separatividade, que inibe temporariamente a compreensão espiritual, principalmente da unidade com Deus.
Queda e redenção. A idéia da queda do homem, da maldição de Eva e do pecado original, descritos no Gênesis, estão em íntima conexão com o tema da Parábola do Filho Pródigo, e descrevem a ‘queda’ do Espírito na matéria e sua eventual redenção, simbolizada pela jornada do filho pródigo ao país longínquo e seu retorno à casa do Pai. Em contato com a matéria, o Espírito perde temporariamente a consciência da unidade, desenvolvendo a ilusão da separatividade, individualismo, orgulho, sensualidade, que constituem o preço que cada habitante da Terra deve pagar para alcançar o estado do Homem Perfeito, o Adepto.
Tudo o que é meu é teu. A suave reprimenda do Pai ao filho mais velho, constitui a afirmação da verdade eterna de que todos os seres são expressões da vida una divina. Conseqüentemente, todas as manifestações da vida una participam nas realizações umas das outras, ainda que aparentemente separadas. A afirmação do Pai sobre a unidade aparece corretamente ao final da estória, que descreve alegoricamente o término de um grande ciclo.
(1) Este texto foi retirado do livro Os Ensinamentos de Jesus e a Tradição Esotérica Cristã, de Raul Branco, publicado pela Editora Pensamento em 1999.
(2) The Hidden Wisdom in the Holy Bible, op.cit., Vol. I, parte iv, apresenta uma seção com a exposição da Parábola do Filho Pródigo como um exemplo da lei dos ciclos. (pg. 197-243).
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