segunda-feira, 19 de março de 2012

Jacob Boehme - 2

"Deus está na sublime semelhança e não no espírito das estrelas e dos elementos; ele nada possui além de si mesmo em sua própria semelhança. E mesmo que ele possua algo, somente compreende aquilo que nasceu e emanou dele: a alma à semelhança de Deus. É por isto que tudo o que escrevo é parecido com o que escreve um aluno que vai à escola. Deus conduziu minha alma a uma escola maravilhosa, e eu realmente não posso admitir que meu ego possa ser ou compreender alguma coisa."

Neste mundo de informação ilimitada, será que Jacob Boehme (1575-1624) ainda tem algo a dizer aos homens modernos, que já sabem de tudo?

Qualquer pessoa que parta deste ponto de vista terá pelo menos um sorriso de complacência lendo os textos e pensamentos deste simples sapateiro de Görlitz na antologia de suas obras intitulada Viver na simplicidade de Cristo.

Mas quem, hoje, ainda fala tão convincente e profundamente de Cristo, de Deus e do Espírito Santo?

A teologia, o materialismo e as ciências, conduziram a humanidade ao mais baixo ponto de seu desenvolvimento.

Ódio, violência, guerra, genocídio fazem parte integrante da vida cotidiana.

"Viver na simplicidade", conforme escreve Jacob Boehme, é um conceito que se apresenta completamente diferente em 2012.

A prosperidade aproxima os modos de vida de inúmeras culturas diferentes e há tal excesso de coisas materiais que a simplicidade é novamente percebida como "a característica do que é verdadeiro".

Mas será que uma decoração interior sóbria, quase vazia, com uma única e bela obra de arte... e todo o conforto, testemunham esta simplicidade descoberta por Jacob Boehme?

"Não escrevo para aqueles que estão imbuídos de preconceitos, que compreendem e sabem tudo mas que no entanto não sabem nada, pois eles já estão satisfeitos e ricos, mas sim para os simples como eu, e assim me alegro com meus semelhantes."

Qualquer pessoa que tente captar algo da sublime verdade que Boehme quer transmitir a seus semelhantes deverá, portanto, se alistar entre os simples; somente assim ficará, talvez, esclarecido o que ele quer dizer por palavras e conceitos como Deus, Espírito e Cristo.

"Ninguém deve pensar mais a meu respeito além do que está vendo aqui, pois a obra de meu trabalho não é minha, ela não me pertence a não ser na medida em que o Senhor concedeu. Sou apenas seu instrumento, com o qual Ele faz o que quer. Digo-te isto como uma advertência, a fim de que ninguém tente encontrar em mim um homem que não sou, como se eu fosse um artista e fosse dotado de grande inteligência."

Portanto, não se trata de um estilo de vida sóbrio e moderno, de nenhuma obra artística ou científica.

Jacob Boehme deseja que seu leitor seja um buscador, alguém que aprenda todos os dias e cada vez mais a renunciar a seus próprios desejos.

Alguém que, aberta e honestamente, a partir da infinita variedade da vida cotidiana, queira penetrar até a "Vida na simplicidade de Cristo".

Quem era Jacob Boehme, na realidade?
O que este homem tinha a dizer a sua época?
E o que podemos aprender com ele?

Jacob Boehme nasceu em 1575, em Alteseidenberg, uma cidadezinha situada ao sul da cidade alemã de Görlitz, na fronteira polonesa. Sua data de nascimento fica no meio de um período muito movimentado, compreendido entre o início da Reforma (1517) e a atrocidade da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648).

As pessoas que tinham espírito conservador estavam preocupadas com a derrocada do mundo, com a vinda do Anticristo e com o anti-papismo, enquanto que os livres-pensadores se interessavam por um novo mundo que pudesse oferecer novas possibilidades à humanidade.

Jacob Boheme, piedoso e sério, nasce em um mundo em que as comunicações ainda estavam submetidas às limitações da distância. Ele se tornou aprendiz de sapateiro, formou família e
exerceu sua profissão. Nisto, ele não era nem um pouco diferente de seus semelhantes.

Em seu livro Aurora, a aurora nascente (A raíz da filosofia, da astrologia e da teologia, escrito em Görlitz, na terça-feira após Pentecostes, no ano de1612), ele descreve como, por quatro vezes, ele foi tocado pela luz.

Na segunda vez, ele pode "lançar um olhar até o fundo mais íntimo ou centro da natureza oculta". As idéias que ele tirou daí não cessaram de se confirmar, pois a cada dia ele encontrava no coração as maravilhas de Deus.

Sua alegria por estes toques era grande, mas ele mal falava dela, se bem que tentasse descrevê-la por si mesmo ou com a ajuda de alguns amigos.

Segundo ele, isto não era fácil. Tratava-se de verdades universais que sempre foram válidas, mas que são difíceis de serem expressas por palavras.

É que elas têm de ser experimentadas.

Jacob Boehme estava perfeitamente consciente disto. "As palavras matam a viva corrente divina." E ele lutou para traduzir esta força viva, pois ele queria servir-se da linguagem tão somente para descrever suas experiências, mas principalmente para transmitir a Verdade viva e fazer com que seus semelhantes pudessem senti-la.

Em 1613, um manuscrito caiu entre as mãos do pregador de Görlitz, Gregoire de Richter. Depois do ofício religioso, em que Boehme foi atacado do alto do púlpito, ele esperou o pregador para perguntar-lhe quais eram os pecados que ele havia cometido e como ele poderia remediar isto.

A resposta foi somente uma reação furiosa, e assim começou uma campanha de ódio contra o "filósofo teutônico".

As idéias de Boehme eram diametralmente opostas às convicções religiosas da época.
O que despertou mais a oposição e o ódio foram principalmente seus escritos sobre a vontade oculta de Deus e a vontade do homem.

Boehme considerava a força crística como mediadora na relação entre Deus e o homem. Cristo era o poder que permitia a reconciliação do homem, que se tornara novamente humilde com seu Deus.

Neste processo, Boehme não coloca o mediador em uma região celeste indefinida,mas dentro do próprio homem.

Ele fala de experiência própria, pois ele havia encontrado este poder dentro de si mesmo, sem ajuda de nenhuma instituição, pessoa ou texto.

Estes assuntos o aproximavam da tradição mística de Mestre Eckhart (1260-1327/29) e Thomas A’Kempis (1379-1471).

Suas experiências não-dogmáticas suscitaram reações, como acontece com todos os que buscam a verdade: processos, perseguições, campanha de calúnias, banimentos,prisão.

Nada lhe foi poupado. Além disto, proibiram a publicação de seus escritos.

Jacob submeteu-se durante seteanos a este veredicto, e depois reuniu em torno de si um círculo de simpatizantes para esclarecer certas passagens da "Aurora nascente", a pedido de alguns amigos.

Ele chamou este grupo de "Escola doPentecostes teosófico".

Com auxílio de imagens e de conceitos tirados da Bíblia, da astrologia e da alquimia, Boehme tentou fazer com que eles partilhassem com ele a compreensão da relação eterna entre Deus, o homem e o mundo. Seus escritos circularam exclusivamente em pequenos cenáculos.

Em 1619, ele vivenciou um novo impulso de luz e nos cinco últimos anos de sua vida ele escreveu trinta livros e mais de cem cartas, cerca de quatro mil páginas, no total.

Nesses textos, ele fala do fogo oculto que brilha dentro dele e das dificuldades que encontra em traduzir suas experiências por meio de palavras.

Cada novo texto foi sendo seguido por interrogatórios, ameaças e afrontas.

Além disto, Jacob Boehme reagiu em conformidade com suas idéias sobre as razões pelas quais Deus permite o sofrimento neste mundo:

"Pergunta: a razão fala: Por que Deus criou a vida sofrida e dolorosa? As circunstâncias da vida não poderiam ser melhores, sem sofrimentos e tormentos, posto que ele é o começo e o fim de
todas as coisas? Por que ele tolera a oposição? Por que ele não faz com que o mal desapareça, posto que ele é o Único Bem em todas as coisas?

Resposta: Uma coisa não pode aprender a se conhecer sem oposição, pois, se ela não tivesse nada que lhe oferecesse resistência, continuaria indefinida e não se voltaria para si mesma.
E se ela não voltasse para dentro de si mesma, lá de onde ela provém em sua origem, ela nada saberia a respeito de seu estado.

Se a vida natural nãoconhecesse oposição e se ela não tivesse nenhuma finalidade, ela jamais se perguntaria a respeito das profundezas de onde ela saiu; assim, o Deus oculto continuaria desconhecido para a vida natural.

Por mais que tenha sofrido profundamente o "furor satânico" de seus perseguidores, que nada compreendiam de seus textos, Boehme continuou sendo clemente, pois sabia que a oposição é
inevitável e necessária.

Dizem que ele teria dito um dia que seu "inimigo" preferia um bom copo de vinho a uma discussão sobre o renascimento em Cristo.

Até sua morte, em 1624, este grande místico e filósofo foi ignorado pelo clero oficial. Recusaram-lhe um túmulo e uma homília.

Jamais foi publicado qualquer aviso de falecimento.

Ao lado de todos estes ultrajes, ele também teve reconhecimento e estima.

Na corte de Dresden, liam seus textos. Por mais que eles fossem oficialmente proibidos na Alemanha, eles seguiram seu destino até os buscadores, por intermédio de inúmeros simpatizantes de outros países.

O negociante holandês Abraham Willemszoon van Beyerland desempenhou um papel importante na impressão e na difusão de sua obra.

A influência de Boehme sobre o espírito dos europeus ocidentais é inegável.

 
Príncipes, sábios, filósofos, teólogos, esotéricos, todos se debruçaram sobre sua obra e aprenderam muito, sendo influenciados por elas.

Entre eles, nomes célebres: Leibnitz, Spinoza, Hegel, Schopenhauer e Isaac Newton.

As obras que escreveu são o maior monumento de conhecimentos teogônicos (concernentes ao surgimento dos primeiros princípios em Deus) e cosmogônicos (concernentes à criação do Universo e das criaturas) da história do cristianismo.
Boehme teria, sem dúvida, ficado bem espantado em saber que tantos grandes espíritos puderam dizer que eram seus discípulos, pois ele não se considerava nem um mestre nem um pastor, nem um ser excepcional!

Ele viveu muito lucidamente, em "divina oferenda", e transmitiu suas experiências e percepções àqueles que eram receptivos a elas.

É assim que tentou levar seus semelhantes ao renascimento pela força de Cristo, acontecimento interior não ligado ao tempo ou a dogmas.

No decorrer de quatro séculos, ele deu uma nova esperança a muitos. Assim, descobriram que o homem leva duas vidas: a do homem biológico que se constrói com ajuda de inúmeras forças naturais, e a vida cuja essência tem por origem Deus.

Somente poderemos atingir esta última graças ao renascimento pela força crística universal, processo que se desenvolve no homem interior.

O homem da natureza deve diminuir cotidianamente para finalmente se aniquilar a fim de que o ser de essência divina desperte.

Jacob Boehme não considerava Cristo como uma pessoa, mas como uma força recriadora.
Uma força una, "simples", que é preciso ser admitida no coração: a única força que sempre foi, é e será. É a partir desta força que se desenvolve a "verdadeira vida" que Jacob Boehme designa pelas seguintes palavras:

"Viver na simplicidade de Cristo".

 
*Obras em português, A aurora nascente, A sabedoria divina, A revelação do grande mistério, Os três princípios da essência divina, Quarenta questões sobre a alma.
 

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