terça-feira, 20 de maio de 2014

Gnose



Tratado Gnose

A palavra Gnose é imortal e serve para designar, ainda hoje, uma tentativa de vanguarda. Os gnósticos modernos são também aqueles que procuram os
pontos de concordância de todas as religiões, que reivindicam uma moral anticonformista, uma tomada de consciência das instituições do pensamento
mágico, enfim, todos os que propõem um método de salvação aos seres que se sentem “estrangeiros” neste mundo.

Layton, em sua coletânea de escritos gnósticos, refere-se a um grupo antigo que se autodenominava “Gnósticos”, pessoas aptas a ter conhecimento. Esclarece que, sendo gnosis uma palavra da linguagem comum em grego, o mesmo não ocorria com seu estranho derivado, gnõstikos.

Mostra haver uma distinção entre conhecimento proposicional (o eidenai grego) e a familiaridade com um objeto ou pessoa, cujo substantivo grego é gnosis, associando-o ao inglês acquaintance.

Em outras palavras, distingue o saber do conhecer; e confere a este uma conotação de proximidade ou familiaridade. Adiante, identifica gnosis a um entendimento não-discursivo.

O Evangelho Segundo Filipe:

As pessoas não podem ver coisa alguma no mundo real, a não ser que se tornem essa mesma coisa. No reino da verdade, não é como os seres humanos no mundo, que vêem o sol sem ser o sol, e vêem o céu e a terra e assim por diante sem ser eles. Antes, se você viu qualquer coisa lá, você se tornou aquela coisa: se você viu o ungido (Cristo), você se tornou o ungido (Cristo); se você viu o [pai, você] se tornará o pai. Assim [aqui] (no mundo) você vê tudo e não [vê] a si mesmo. Mas lá, você vê a si mesmo; pois você se torna o que você vê.

Conhecer-se é, com efeito, reconhecer-se, reencontrar e recuperar o verdadeiro“eu”, anteriormente obnubilado pela ignorância e pela inconsciência a que afusão com o corpo e a matéria submete o homem: a gnosis é em realidade uma epignosis, um “reconhecimento”, uma rememoração de si mesmo.

Os cristãos, diz Tertuliano, citando Paulo, deveriam, todos, falar e pensar as mesmas coisas. Quem quer que se afastasse do consenso era, por definição, um herege, porque, como observa ele, a palavra grega traduzida como “heresia” (hairesis) significa literalmente “opção”. Logo, o “herege” era um indivíduo que faz uma opção.

Tertuliano, porém, reafirma que fazer opções era um mal, porque elas destroem a unidade do grupo. A fim de erradicar a heresia, continua, os líderes da Igreja em hipótese alguma deviam permitir que as pessoas fizessem perguntas, porque as perguntas é que as tornam heréticas, acima de tudo, aquelas como as seguintes: de onde vem o mal? Por que o mal é permitido? Qual a origem dos seres humanos?

Tertuliano quer colocar um ponto final nessas questões e impor a todos os crentes a mesma regula fidei, ”regra da fé”, ou crença. [...] O verdadeiro cristão, diz Tertuliano, apenas resolveu nada saber ...que divirja da fé.

Associar a gnose, não apenas ao sapere aude do Esclarecimento, mas ao holismo, lembra o modo como Isaac Newton formulou leis e princípios da Física e ao mesmo tempo estudou alquimia, supondo conforme argumenta Eliade em Forgerons et alchimistes um conhecimento que ultrapassasse a fronteira entre ciência e magia.

E, reciprocamente, o perfil de um mago como John Dee, segundo Yates um cientista prático e um inventor, além de matemático genuíno, de importância considerável, em contradições aparentes [entre magia e ciência] que se inscrevem com absoluta naturalidade no modo de ver do mago da Renascença

E, apesar de todos os argumentos em favor da aproximação do gnosticismo ao sapere aude, ao holismo, à integração de ciência e magia, razão e iluminação, a leitura de seus “evangelhos” ou “escrituras” mostra uma doutrina cujo tema ou referente é, não a realidade empírica, constituída pelos fenômenos que interessam à ciência, mas o outro mundo.

Seus textos expõem um conhecimento da esfera supra-celestial; inscrevem-se no âmbito da teodicéia, teosofia e teologia. Não demonstram interesse de seus autores pelo mundo imediatamente sensível, e por assuntos mundanos.

Nisso, em seus referentes externos, “escrituras” gnósticas diferem dos testamentos judaico e cristão. Com efeito, a maior parte do que é relatado na Bíblia se passa ou é apresentado como histórico, situado na diacronia.

Desde Gênesis, acompanha uma série temporal. Seus protagonistas são, alguns, personagens históricos; outros, míticos, porém apresentados como se fossem históricos. Moisés pode ter sido mítico e a abertura do Mar Vermelho ou a entrega das Tábuas da Lei são certamente mitos, porém o Egito do êxodo judaico é aquele mesmo dos faraós estudados em livros de História.

Há, não só uma cronologia, mas uma contextualização. Os Herodes e Pilatos bíblicos existiram e governaram a então Judéia. Caifás de fato foi sacerdote do Templo. Informação disponível sobre Herodes, Pilatos e Caifás é valiosa para a interpretação dos evangelhos, assim como a localização de lugares onde se desenrolou sua ação.

Por isso, edições da Bíblia podem incluir mapas e tabelas cronológicas, comparando seus eventos com outros, contemporâneos: o Êxodo, fugindo da opressão de Ramsés II, foi aproximadamente em 1250 a.C; e Davi reinou de 1010 a 970 a.C.

Nisso, em seus referentes externos, “escrituras” gnósticas diferem dos testamentos judaico e cristão. Com efeito, a maior parte do que é relatado na Bíblia se passa ou é apresentado como histórico, situado na diacronia. Desde Gênesis, acompanha uma série temporal.

Seus protagonistas são, alguns, personagens históricos; outros,míticos, porém apresentados como se fossem históricos. Moisés pode ter sido mítico e a abertura do Mar Vermelho ou a entrega das Tábuas da Lei são certamente mitos, porém o Egito do êxodo judaico é aquele mesmo dos faraós estudados em livros de História. Há, não só uma cronologia, mas uma contextualização. Os Herodes e Pilatos bíblicos existiram e governaram a então Judéia. Caifás de fato foi sacerdote do Templo.

Informação disponível sobre Herodes, Pilatos e Caifás é valiosa para a interpretação dos evangelhos, assim como a localização de lugares onde se desenrolou sua ação. Por isso, edições da Bíblia podem incluir mapas e tabelas cronológicas, comparando seus eventos com outros, contemporâneos: o Êxodo, fugindo da opressão de Ramsés II, foi aproximadamente em 1250 a.C; e Davi reinou de 1010 a 970 a.C.

Há mais, contudo: nos evangelhos propriamente cristãos, aqueles incorporados à Bíblia, as parábolas e ensinamentos de Jesus Cristo não apenas fazem parte de um relato biográfico, cujas coordenadas de tempo e espaço, históricas e geográficas, são claras. Seu referente é a realidade imediata.

Falam do grão de mostarda, do semeador, da figueira, da ovelha desgarrada, de ricos e pobres, dos demais componentes do dia-a-dia daqueles a quem se dirigia o ensinamento. Salvo alguns momentos mais espetaculares, como o da tentação pelo diabo, dos relâmpagos na crucificação, da Ressurreição e da conversão de Paulo, o tema e o tom do Apocalipse de João constituem-se em exceção, e não, como nos textos gnósticos, em tônica dominante. Jesus Cristo pregou com os pés no chão, e nisso distinguiu-se de magos e profetas seus antecessores e contemporâneos.

Como que dispensou efeitos especiais: nos Evangelhos, quase nada de carruagens de fogo, dragões, relâmpagos e trovões, convulsões e cataclismos.

Mesmo os milagres são de uma extrema simplicidade: além da cura, não acontece mais nada. Há uma preocupação dos evangelistas em biografá-lo, desde a especificação de sua origem, de quem descendia, remontando até Abraão, na abertura do evangelho de Mateus; e de dar-lhe um perfil bem definido, de caracterizá-lo.

E, também, de biografar apóstolos e historiar a formação da Igreja, em Atos dos Apóstolos. Nada disso se encontra em “evangelhos” ou “escrituras” dos gnósticos, pelo seguinte motivo: acontecimentos históricos, cenas do dia-a-dia e dados biográficos não têm interesse conforme o paradigma dualista.

Aceita a separação radical entre dois mundos, o do sagrado e do profano, do espírito e da matéria, então o texto sagrado desconhecerá o mundo profano e material.

Outros historiadores associam o Novo Testamento, desde os Evangelhos, à consolidação de um cristianismo romano e à correlata marginalização e exclusão de cristianismos esotéricos, afins ao gnosticismo. É o que argumenta Pagels.

Também Bloom (que elogia Pagels) acentua, em Jesus e Javé e no capítulo sobre Jesus em Genius, a oposição entre um cristianismo voltado para a conversão dos gentios, romano, Essa cronologia parece consensual entre historiadores das religiões; está na Bíblia de Jerusalém aqui consultada.

A partir de Paulo, e já manifesto nos evangelhos, e um cristianismo judaico, originário (seria a Igreja de Jerusalém, conduzida por Tiago).

Em contraste com essas características da escritura canônica, do conjunto de textos que Layton agrupa como Escrituras Gnósticas Clássicas nenhum tem forma de parábola tratando do cotidiano. Referem-se a encontros com emissários divinos, ensinamentos relativos a iniciações, batismos e “câmara nupcial”.

Tampouco são relatos históricos. Abolem as coordenadas espaciais e temporais.

Por exemplo, no Hino da Pérola,125 que é exceção pela forma de narrativa, e não de pregação ou “monólogo da sabedoria”, os acontecimentos narrados são atemporais: o Egito ao qual o protagonista viaja é uma metáfora do mundo caído (derivada, é certo, do Egito da escravidão judaica na Bíblia), contraposta ao Oriente, também metáfora, mas do mundo perfeito.

O conhecimento gnóstico foi, ainda, seletivo, restrito, do âmbito dos eleitos, os descendentes de Set: aqueles arbitrariamente lançados em um mundo que lhes é estranho, por obra de um deus hostil. Em uma das variantes, a dos cainitas, são descendentes de Caim; os amaldiçoados, precursores dos poetas malditos como Baudelaire, que, em Abel e Caim, tomou o partido de Caim e, repetindo o que havia proclamado Nerval, identificou-se à raça maldita dos rebeldes contra o Criador.

Eleitos gnósticos distinguem-se dos psíquicos ou crentes, que podem ter acesso à gnose através do aprendizado e disciplina, ou seja, da iniciação, e dos somáticos ou híliacos, alheios à dimensão espiritual.

Entre examinar e esclarecer o sentido da gnose, do conhecimento para os gnósticos, e conhecer o gnosticismo e os gnósticos, descrevendo sua doutrina e relatando sua história, há uma considerável distância. Entra-se no domínio das suposições, por causa das lacunas na informação disponível. E a descrição do gnosticismo não é dificultada apenas pela destruição de seus vestígios, mas pela diversidade interna.

Esta decorre da sua natureza não-dogmática, distinta do que Bloom chama de crenças normativas ou do que Scholem chama de religião institucional: o gnosticismo correspondeu a um conjunto de doutrinas afins, seguidas e praticadas pelos adeptos de uma quantidade de profetas e mestres.

Do capítulo As Provações do Judaísmo, da História das Crenças e das Idéias Religiosas de Eliade, é possível destacar uma agenda de temas filosófico-religiosos judaicos que viriam a ser incorporados pelo gnosticismo e, alguns, pelo cristianismo: a formulação de uma doutrina unitária da história universal; o conseqüente milenarismo, com os anúncios da vinda do Messias; a personificação da Sabedoria como Chokmah, que os gnósticos iriam hipostasiar como Sophia; a doutrina do Antropos, Adam Cadmon ou Adamas, o homem primordial e universal.

E, de especial interesse para que se compreenda a gênese do gnosticismo, as especulações e discussões sobre o alcance e extensão do mal e de sua relação com o mundo.

Nesse temário, tem relevância a suposição de um Deus oculto, o deus absconditus descrito de modo paradoxal, como equivalente à coincidentia oppositorum, e do qual o Jeová bíblico seria apenas uma manifestação ou emanação.

Como expõe Scholem, tal suposição abre as portas para a transformação de Jeová em demiurgo, o arquiteto ou artífice do universo, e para a crença em seres intermediários entre o homem e Deus: anjos, arcanjos, querubins e também demônios, preenchendo o que o historiador Hadot, Pierre, do misticismo judaico chama de topografia mística do reino divino.

Em acréscimo, Jonas observou que os nomes de Deus do Velho testamento, Iaô, Sabaoth, Adonais, Elohim, El Shaddai – sofreram um rebaixamento: de sinônimos do uno e supremo, passaram a nomes próprios de seres demoníacos inferiores, os arcontes

O ambiente cultural da Alexandria da Antiguidade tardia marcado pela presença de personagens de elevada estatura intelectual: Plotino, Porfírio, Filo, Zózimo, Orígenes, Clemente, Valentino, Basílides; e também por mulheres importantes: Hipácia, as alquimistas Maria e Cleópatra, além de profetisas e sacerdotisas gnósticas preservava, até ser destruído pelo sectarismo e pelas queimas da sua biblioteca (uma delas cristã; a última, muçulmana), um ecumenismo e universalismo que haviam sido característicos do império de Alexandre, em sua tentativa, como assinala Jonas, de promover a união do Ocidente e do Oriente. Para Eliade,

No desfile encabeçado por Mani e fechado por Simão o Mago e Apolônio de Tiana comparecem hernianos, priscilianos, elquesaítas, carpocracianos, nicolaítas, marcosianos, helvidianos, messalianos, paternianos, arcônticos, tacianianos, valesianos, cainitas, circonceliões, valentinianos, teodocianos, merintianos, apolinaristas, crintianos, marcionitas, encratitas, ebionitas. São devidamente acompanhados pelos magos e heresiarcas Saturnino, Cerdon, Marcião, Bardesanes, Valentim, Basilides, Aecius, Priscila, Maximila, Montano, Ário, Marcelo de Ancira, Metódio, Cerinto, Paulo de Samosata e Hermógenes

Fica claro que não houve uma Igreja gnóstica organizada, a exemplo do catolicismo, a não ser em alguns momentos: como marcionismo nos séculos II e III (deMárcio ou Marcião, cristão dissidente que rejeitava integralmente o Velho Testamento); como igreja oculta dos valentinianos; e com Bardaisan ou Bardesanes e sua escola do Apóstolo Tomé, por volta de 200 d. C. em Edessa (na atual Síria), no reino de Osrhoëne (que cobria a Mesopotâmia) como observa Hoeller, Edessa foi muito provavelmente o primeiro estado cristão e o único estado gnóstico na história.

Ramificações do gnosticismo nas quais é possível ver a organização como igrejas viriam a ser o maniqueísmo especialmente em seu início, de 242 a 273 d.C, quando foi religião oficial iraniana e o mandeísmo.

Relatos da época e as subseqüentes pesquisas acabaram por mostrar que, mesmo sem contar a seu favor com a organização do cristianismo, o gnosticismo esteve presente em uma extensão territorial que abarcava desde a Península Ibérica até o Alto Egito, passando por Roma, pela Grécia, Síria e por Alexandria, durante o período entre a instauração do Império Romano sob Augusto e Tibério, seu apogeu entre Trajano e Adriano, sua divisão com a segunda sede imperial em Bizâncio a partir de Constantino, e sua decadência.

Comunidades e cultos gnósticos foram documentados na Armênia, no Irã, e a condenação do priscilianismo, uma das variantes do gnosticismo, foi o tema de um concílio em Braga, Portugal, no século VII.

No final do século VII o gnosticismovoltaria a ser comentado e questionado pelo heresiólogo sírio Teodoro Bar Konai.

O maniqueísmo, por sua vez, difundiu-se desde a China e Turquestão até a Península Ibérica, passando pela Europa e pela África do Norte (lembrando que Agostinho, antes de tornar-se o grande filósofo e santo do cristianismo, foi maniqueísta).

Suas extensões incluíram os paulicianos da Armênia no século VII, os bogomilos das atuais Romênia, Bulgária e Bósnia nos séculos IX a XV, e os cátaros provençais exterminados no século XIII, sugerindo uma migração através desses países e regiões.

Em acréscimo, houve ramificações asiáticas do gnosticismo, ou de combinações de maniqueísmo e gnosticismo. Dentre elas, o mandeísmo (os significados dos vocábulos mandeu e gnóstico são equivalentes), uma religião de adeptos de João Batista, mas não de Jesus Cristo, que subsiste até hoje, com uns 10.000 seguidores no Iraque.

Cabe registrar também, no capítulo das extensões tardias do gnosticismo, suas manifestações muçulmanas. Corresponderiam, segundo Doresse, aos ismaelitas e ao sufismo; para Hutin, também à estranha seita dos haxixim ou assassinos liderada por Hassam ibn Sabbah, o “velho da montanha”.

Com o extermínio dos cátaros no século XIII, encerrou-se de vez o gnosticismo como forma de organização social no Ocidente. Mas não como doutrina e visão de mundo. Além de seus reflexos em heresias, dissidências e revoltas religiosas, reapareceria em hermetistas e magos da Renascença, e em místicos e esoteristas, os “iluminados”.

Durante séculos, o conhecimento sobre gnosticismo derivou de fontes indiretas e tendenciosas: refutações por patriarcas da Igreja como Irineu, autor do Adversus Haeresis, Hipólito e Epifânio, autor do Panarion; e a crítica helenística e judaica

Qualquer que fosse sua origem, é mais correto referir-se aos documentos de Nag Hammadi como biblioteca gnóstica é assim que Robinson e Doresse os designam – e não como “evangelhos” ou “escrituras”, como o fazem Pagels e Layton, entre outros: são termos que supõem a seleção, com a exclusão do não-canônico (daí preferir utilizá-los entre aspas, quando relacionados ao gnosticismo).

Os formadores daquele acervo revelaram um espírito genuinamente gnóstico no modo como preservaram fontes de conhecimento. Ousaram saber. Procederam como bibliotecários, ou pesquisadores interessados em um estudo de religiões e teologia, respeitando seu caráter heterodoxo.

Há, ainda, uma terceira categoria, necessária para se falar sobre gnosticismo: a transmissão oral. É claro que a escrita recolheu algo transmitido oralmente. Mas, sendo doutrina esotérica, certamente havia um ensinamento especificamente oral, destinado aos iniciados e veiculado em cultos. Incluía, como se observa através de recomendações e possíveis transcrições em algumas das “escrituras”, não apenas senhas e ditos paradoxais, mas cantorias semelhantes aos mantras: o “falar em línguas” indutor ou expressão de alterações da consciência, discutido no capítulo precedente.

Para Hoeller e Pagels, nos rituais gnósticos tinham lugar não só tais mantras,mas a música e, ainda, a dança, nisso diferindo do cristianismo ortodoxo.

Uma coisa é certa: o evento central naqueles rituais era o batismo, concedido pelo Grande Set.

No entanto, o sentido do batismo no gnosticismo é distinto daquele do sacramento católico: onde o catolicismo opera com os pares pecado e absolvição, ou culpa e redenção, a polaridade gnóstica é entre ignorância e conhecimento.

No gnosticismo valentiniano, há acréscimos e um ganho em complexidade em matéria de sacramentos. A principal contribuição daqueles adeptos foi a câmara nupcial. Layton, no prólogo de O Evangelho Segundo Filipe, comenta:

[...] as diversas referências a sacramentos (“mistérios”), provavelmente os que eram reconhecidos pela comunidade ou comunidades cristãs valentinianas. Pelo menos uns cinco eram reconhecidos (cf. n. 60) [este e os demais números entre parêntesis são trechos ou versículos de O Evangelho Segundo Filipe, comentado por Layton]: batismo, crisma (unção com óleo santo), eucaristia, resgate e câmara nupcial. Desses termos, o mais distintamente valentiniano é “câmara nupcial”.Nada, em GPh [O Evangelho Segundo Filipe na abreviatura de Layton], indica se câmara nupcial se expressava por um verdadeiro ritual ou se era meramente uma metáfora da salvação. Em “a câmara nupcial figurada”, a alma ou “imagem” se une a um anjo e como que se torna um andrógino, seguro contra tentações sexuais (n. 53). Essa união corrige a separação de Adão e Eva, o andrógino original (n. 70, cf. Rad). Nessa união, a pessoa se empenha no “retorno” (apokatastasis) para o lar espiritual isso é, a recepção da ressurreição e do espírito santo.

A leitura dos textos valentinianos mostra que a “câmara nupcial” não é o lugar da celebração do matrimônio, mas do encontro do iniciado com a centelha divina, seu verdadeiro “eu”.

Correspondem-lhe, portanto, as bodas alquímicas, união de contrários para realizar a transmutação. Mas o matrimônio ser simbólico não exclui a possibilidade da hierogamia, de uma consumação real, tomando os símbolos ao pé da letra.

Tamanho volume de informação, porém ao mesmo tempo tão díspar e lacunar, contribuiu para as divergências entre estudiosos, nas interpretações do gnosticismo e no delineamento de seu âmbito, do próprio campo de estudos. Alexandrian e Roob tomam o hermetismo do Corpus Hermeticus como gnosticismo, enquanto Puech e Doresse lhe dedicam um capítulo próprio em seu tratado de história das religiões.

Já Bloom classifica o hermetismo como gnosticismo secular em Jesus e Javé.

Os Nomes Divinos, e Layton inclui o tratado primeiro do Corpus Hermeticus, o Poimandres, em As Escrituras Gnósticas, mas catalogado em Outras correntes antigas, afins, porém distintas do gnosticismo, assim como a gnose cristã de O Evangelho segundo Tomé ao qual, no entanto, Puech dedica todo o segundo volume de En quête de la gnose. E Montserrat Torrents, na introdução de sua edição dos textos de heresiólogos, cita um congresso de historiadores para afirmar que gnosticismo é mesmo sinônimo de gnosticismo cristão, valentiniano, a partir do século II; outras modalidades poderiam ser alcunhadas de gnoses, mas não de gnosticismo.

É um ponto de vista diametralmente oposto ao de Jonas, que identificou um gnosticismo cristão, obviamente herético, outro judaico e pré-cristão, e ainda o gnosticismo pagão independente do hermetismo, além de incluir o maniqueísmo como gnosticismo oriental.

Eliade, no capítulo intitulado Paganismo, Cristianismo e Gnose de História das Crenças e Idéias Religiosas, trata de gnose valentiniana e do maniqueísmo, tido como a mais radical das sínteses gnósticas; mas associa o gnosticismo originário ao primitivo cristianismo esotérico.

Pagels, ao mesmo tempo que acentua o contraste entre ortodoxia cristã e gnosticismo, pela valorização gnóstica do conhecimento versus a imposição ortodoxa da hierarquia, vê gnosticismo como um cristianismo mais fiel à mensagem de Jesus Cristo.

Contudo, como são, de fato, administradas as normas de Deus? Nesse ponto, a teologia de Clemente se torna prática: Deus, diz ele, delega sua “autoridade de reinar” aos “governantes e líderes da terra”. Quem são os governantes indicados? Clemente responde que são os bispos, padres e diáconos. Quem se recusar a “curvar-se” e a obedecer aos líderes da igreja é culpado de insubordinação contra o próprio mestre divino.

[...] Para Inácio, assim como para os pagãos romanos, política e religião constituíam uma unidade inseparável. Acreditava que Deus se tornava acessível à humanidade por meio da igreja – e de forma mais específica, por intermédio dos bispos, padres e diáconos que a administravam: “sem eles, não há nada que possa chamar-se igreja!” Em nome da salvação eterna, impelia o povo a se submeter aos bispos e padres.

E o gnosticismo aparece como doutrina rebelde e até libertária, por criticar a autoridade representada não só pela hierarquia eclesiástica, mas pelo próprio criador do mundo.

Pode-se ir mais longe, e supor que os gnósticos, não dispondo de um repertório de categorias propriamente políticas, faziam a crítica do Império Romano através de categorias teológicas: atacavam a divindade que legitimava o Império; no âmbito especificamente judaico, o Deus que conferia autoridade aos sacerdotes do Templo; e no emergente cristianismo, sua hierarquia sacerdotal

Em São Paulo, encontra-se doutrinas comuns ao cristianismo primitivo e à gnose. O apóstolo apela, até mesmo, à “Sabedoria de Deus ... que está
escondida, que Deus preparou antes mesmo dos séculos para nossa glória e que nenhum dos príncipes (ao pé da letra, destaca Doresse: dos arcontes) deste século (ao pé da letra: deste eon) conheceu.” [o trecho citado por Hutin é de I.Coríntios II, 7-8]

Paulo polemiza antes de Marcião contra a Lei de Moisés, cujos mandamentos são classificados como “ministério da morte, gravado em letras sobre as pedras”, em oposição à Lei nova, “ministério do Espírito”, trazida por Jesus.

Paulo adota a divisão tripartite do homem: corpo, alma e espírito. Satã é o “Príncipe deste mundo”, assistido por numerosas potências.

Na perspectiva paulina, o homem ressuscitará em corpo glorioso, pois “a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus”. [Hutin cita 2. Coríntios, III, 7]

Mas Paulo recusa-se absolutamente a fazer endossar ao Criador a responsabilidade do mal e do pecado original; e não se encontra nele qualquer
docetismo.

Vê-se que a relação da pregação paulina com o gnosticismo foi dúplice.

O apóstolo tanto pode ser apresentado como precursor (é a interpretação de Valentino, cuja doutrina lhe teria sido ensinada por Teudas, discípulo de Paulo

É a conclusão a que chega Robinson, fonte especialmente autorizada, em sua condição de coordenador da edição dos escritos de Nag Hammadi:

Assim, o gnosticismo não parece ter sido, em sua essência, apenas uma forma alternativa de cristianismo. Antes, foi uma tendência radical de liberação do domínio do mal ou de transcendência interna que varreu a Antiguidade tardia e emergiu dentro do cristianismo, judaísmo, neo-platonismo, hermetismo e similares. Como nova religião, foi sincrético, derivando-se de diferentes heranças religiosas. Mas sua unidade foi mantida por uma postura muito definida, e é nela que a unidade na diversidade deve ser buscada,

Simão o Mago foi da Samária e Fenícia a Roma; Basilides, sírio, foi para Alexandria, onde morreu em 135; Marcião, seu contemporâneo,cristão cismático nascido em Pontos, porto do Mar Negro, procurou fundar seu culto em Roma; Valentino, nascido em Alexandria, instalou-se em Roma em 140; Mani foi da Babilônia à Pérsia, e de lá chegou até a Índia.200 Seus profetas foram migrando através de territórios físicos, assim como por doutrinas e correntes de pensamento

Trata-se desta vez de pensar o mundo inteiro concebido como uma entidade viva, o vivente perfeito cuja idéia é uma alma, a alma do mundo.

O Timeu explica que este mundo foi criado pelo Demiurgo, uma espécie de artesão supremo que não é forçosamente deus, embora Platão o chame também de theos.

E nós reencontramos o esquema da fabricação artesanal: o demiurgo realiza sua idéia criando o mundo.

Essa referência ao divino é, em última instância, aexplicação da transcendência das ideias. [...] o platonismo já havia traçado como que um esboço do que foram certos temas da teologia gnóstica. Que se abra o Fedro, o Timeu, o Fédon.... : já se lerá como a queda acidental da alma a projetou do mundo supra-terrestre na materialidade dos corpos, e como a alma caída ainda guarda aqui, como um tesouro secreto, lembranças de realidades absolutas que havia contemplado em suas origens.

[...] para Platão, o Demiurgo não é a encarnação do Mal. O Mundo é um “Cosmo”, sendo, portanto, perfeito e harmonioso. Para Plotino, assim como para os estóicos, os astros são deuses cuja contemplação facilita o relacionamento dos seres inteligíveis; cf. Enéades, (II; IV, 8; etc). No que se refere à encarnação da alma, ela é, para Plotino, uma “queda”, já que a alma perde a sua plenitude espiritual e a sua autonomia (IV, 8, 5, 16); mas é ainda uma descida livremente consentida a fim de auxiliar as existências situadas no mundo inferior (IV, 8, 7, )

Assim, gnósticos simultaneamente alteraram o sentido do demiurgo platônico e rebaixaram o Deus do monoteísmo judaico-cristão.

Questionando a Bíblia, ofereceram uma terceira opção: no lugar de Jeová, o severo Deus justiceiro, e do misericordioso Deus cristão, postularam o deus ignorante, por isso responsável pelos males do mundo.

E não se limitaram a reinterpretar o Gênesis. Foram além, e o contestaram. Em “escrituras” gnósticas clássicas, o dilúvio é um flagelo provocado por Ialdabaoth; a serpente é uma fonte efetiva de sabedoria; e Abel e Caim são o fruto de um estupro de Eva por arcontes. Chegaram a afirmar, em O Livro Santo do Grande Espírito Invisível, que os habitantes de Sodoma e Gomorra foram uma semeadura de Set, o arquétipo e pai dos eleitos.

É o que resume Puech: A própria vinda do Cristo nada tem a ver com as profecias inspiradas pelo Demiurgo.

Os profetas, além disso, como todos ou quase todos os personagens da história antiga de Israel, foram servidores dos Arcontes e do falso Deus de Justiça, e algumas seitas acabam mesmo por exaltar a suas custas todos osmalditos do Antigo Testamento, todos aqueles que se revoltaram contra o
Criador e sua Lei: a Serpente, Caim, Koré, Dathan, Abiram, Esaú, os Sodomitas.

Em outros termos, o passado é condenado e rejeitado; o presente é absolutamente dessolidarizado dele, assim como o Novo Testamento o é do Velho, que ele contradiz e abole.

Gnosticismos valentinianos, mais que cristãos, parecem ser platonizantes.

Correspondem a uma restauração do logos, pois mitos voltam a ser interpretados, em lugar de serem tomados ao pé da letra. Mas o significado da vinda e do martírio de Jesus Cristo é modificado nessa vertente.

Se Cristo foi vítima, e não filho do demiurgo, e um avatar da luz superior ou Princípio Primeiro, não poderia ter ressuscitado em carne e osso, já que, para o dualismo, este e o outro mundo são incompatíveis.

A ressurreição foi um acontecimento visionário, presenciado em primeira mão por Maria Madalena,detentora da primazia entre os discípulos.

Na Pistis Sophia há uma queda, seguida de arrependimento, metanoia, e da salvação.

Mas a queda e arrependimento não são de Adão e Eva, ou da humanidade, mas de Sophia ou Achamoth: novamente, o erro e a queda são cósmicos e transcendentes, e não humanos e imanentes.

E o maniqueísmo recolheu do mazdeísmo, zoroastrismo e hinduísmo a expectativa de um fim dos tempos, um confronto final entre luz e trevas, com a vitória da luz Asclépio, um dos livros do Corpus Hermeticus: Deus é uma esfera inteligível, cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma.

Para exibir mais da complexidade das relações entre monismos e dualismos,observa-se em “escrituras” gnósticas como que um deslizamento de uma mitologia parauma crítica epistemológica, toda vez que o mundo é associado à ignorância, ao
desconhecimento, ao que é falso.

Ialdabaoth seria, então, o criador de uma miragem, uma realidade ilusória.

Deixa de prevalecer o baixo materialismo detectado por Bataille, pois a matéria não é mais uma entidade autônoma, porém um equívoco, um erro da percepção (mas Bataille argumentava que esse deslizamento era, não um refinamentofilosófico, mas uma emasculação, uma transigência ou adaptação às conveniências)

A cosmovisão do gnosticismo, nessas versões, se torna mais próxima daquela do bramanismo, no qual o mundo é o ilusório véu de Maya, e de modalidades do budismo.

E, evidentemente, de todas as variedades de crítica filosófica nas quais categorias etermos para descrever o real seriam nossos, da ordem do sujeito, e não algo objetivamente existente.

É o que Pagels observa na gnose de Valentino: Embora Irineu e outros acusem os cristãos valentinianos de serem dualistas, o Evangelho de Filipe sugere o oposto.

Abandona até mesmo o dualismo modificado que caracterizava a grande maioria dos ensinamentos cristãos,baseados, conforme vimos, na convicção de que o espírito de Deus viveria em constante luta com Satanás. Em vez de conceber a potência do mal como umaforça estranha que ameaçava invadir, e invadia, seres humanos a partir de fora, o autor de Filipe exorta cada um a reconhecer o mal dentro de si e, comconsciência, erradicá-lo.

Conforme a argumentação de Pagels em As Origens de Satanás, o destaque a esse demônio seria eminentemente cristão.

Sua origem é assírio-caldaica, diz ahistoriadora; torna-se judaico e bíblico como anjo rebelde em Gênesis,desempenhando múltiplos papéis: o de mensageiro do Senhor em episódios como o de Balaão, o de atormentador de Jô, e o de um cismático líder ou inspirador de rebeliões. Reaparece nos evangelhos como o tentador de Jesus. A partir daí, passa a ser mencionado como anátema contra os inimigos: sucessivamente judeus, romanos, e em seguida os hereges.

Cabem adendos à análise de Pagels. Para Eliade, a presença de Satanás,provavelmente sob a influência do dualismo iraniano, já era forte na escatologia judaica do século 1º a.C. E Paulo o designou como deus deste mundo em II Coríntios 4:4.

Ora, no gnosticismo clássico Deus-Jeová já é Saclas, o Satã. Contrapor-lhe Lúcifer seria o mesmo que contrapô-lo a si mesmo: não faria sentido. Menos ainda,valorizar nele a rebelião e vê-lo como fonte de conhecimento: o demiurgo é uma divindade conservadora, o regente do status quo, e não da sua transformação. No gnosticismo, a entidade luminosa, detentora e transmissora do conhecimento, antagônica com relação ao demiurgo, não é Satã, porém o Ungido, Set, Cristo ou Hermes-Toth.

Assim, enquanto no gnosticismo há cisão entre dois personagens, um deles o demiurgo, Ialdabaoth, e outro um avatar da divindade superior, o Grande Set ou Ungido, que nas gnoses afins ao cristianismo é Jesus Cristo, no hermetismo ambos se fundem: Hermes-Toth é o bom demiurgo e o avatar.

Tanto é que o Poimandres, primeiro dos tratados herméticos, incluído por Layton em As Escrituras Gnósticas, mas catalogado em Outras correntes antigas, trata de um bom artífice, sincronizado com Deus, criador de um mundo que é belo. Um demiurgo platônico, e não gnóstico; um criador assemelhado ao Grande Arquiteto da maçonaria.

Além disso, o propósito do Poimandres é o mesmo de escritos gnósticos: orientar o adepto para a viagem ascendente, saindo deste mundo. É preciso que ultrapasse sete esferas: as agências do crescimento e do declínio, os meios da ação má,
a ilusão do desejo, a eminência associada com dominação, a arrogância ímpia e a temeridade da imprudência, os maus pretextos para a riqueza, a conspiração da falsidade.

Tais esferas poderiam fazer parte de uma orientação budista; se nomeassem arcontes ou guardiões de cada esfera, seriam gnósticas.

Os resumos e comentários dos livros da Hermética ou Corpus Hermeticus por Yates permitem ver como as duas gnoses, a otimista, do hermetismo, e a pessimista, do gnosticismo, sendo antagônicas, ao mesmo tempo se confundiam ou interpenetravam.

[...] no maniqueísmo, reconhecer-se e reencontrar-se na própria autenticidade ontológica equivale a considerar-se como uma partícula da luz originária, do mundo transcendente, que, apesar de seu estado de abjeção atual não deixa de estar unida ao mundo superior por um laço eterno e imanente. Este é um ponto
capital da doutrina, já que supõe o reconhecimento de uma consubstancialidade
entre Deus e as almas: estas não são senão fragmentos da substância divina, ou, o que vem a ser o mesmo, partículas de Deus caídas aqui embaixo, unidas ao corpo e à matéria e mescladas ao Mal.

Para o gnóstico, os dois mundos, este, temporal e material, e aquele outro, eterno, não têm conexão.

Ao contrário dos simétricos edifícios filosóficos da culturahelênica, o plano inferior não é sincrônico com relação ao macrocosmo; não o reflete. E, ao contrário da doutrina cristã, um não se projeta nem se resolve no outro: a finitude nãoé trânsito para o infinito.

A cisão entre pleroma e kenoma é definitiva. O tempo também é sujeira: nós estamos mergulhados nela e participamos dela pelo corpo, que, como toda coisa material, é obra abjeta do Demiurgo inferior ou do príncipe do mal; no tempo e pelo tempo, nosso verdadeiro “eu”, espiritual ou luminoso por essência, é encadeado a uma substância estrangeira, à carne e a suas paixões, ou às trevas da Matéria. [...]

Esse cativeiro aviltante no corpo e no tempo, o nascimento nos introduz nele, e nossa existência terrestre nos mantém aí.

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