quarta-feira, 28 de março de 2012

Sufis



Assim como a supressão de um livre desenvolvimento interior, suscitada pela ignorância, faz parte do ser humano, assim também faz parte de sua natureza a propensão à busca por uma via de acesso ao divino, e isso jamais pode ser suprimido por muito tempo.

Uma compreensão interiorizada do Corão e de outras escrituras sagradas fez surgir uma nova prática de vida, libertando seus adeptos dos entraves sociais, do dogma imposto e dos valores da época.

Aqueles que seguiram esse caminho foram chamados "sufis", devido ao nome que se dava à veste de lã que usavam.

As descrições relativas às experiências que demarcam a aprendizagem,bem como as numerosas parábolas, testemunham da profundidade alcançada pelo homem que, tendo se tornado uno com a Gnosis, renasce para uma nova aurora.

Felizmente, foram conservados numerosos vestígios dos trabalhos sufis que tratam da vitória sobre o "eu" graças a uma orientação que encontra o seu ponto central em Deus.

Essas obras descrevem aquilo que os cátaros chamavam endura, a via na qual o eu capitula diante da alma divina interior que desabrocha.
Considerações detalhadas alternam com uma abundância de sentenças curtas que levam à reflexão. Elas mostram que os esquemas de pensamentos convencionais, que servem de guia aos desgarrados, são totalmente impróprios para o caminho de libertação da Alma.

Esses escritos revelam que vive-se o caminho "no presente", em nossa vida cotidiana, e que cada passo é dado na Luz disponível a cada instante.
Atravessar o deserto é um empreendimento suicida para aquele que previamente não avaliou as distâncias entre as etapas, não localizou os oásis, as zonas de sombra, os poços, e não administrou previdentemente os recursos alimentares e a manutenção da montaria.

Por analogia, os sufis distinguem diferentes "estados" (hal) e diversas "etapas" (magam) pelos quais o peregrino deve necessariamente passar.

Daí a comparação entre a viagem através do deserto e a caminhada do buscador da verdade.
Cada passo implica num esforço conscientemente orientado.

Para um, trata-se de encontrar sombra, um poço, um oásis; para o outro, uma faceta do ensinamento, uma fonte de aprofundamento para a consciência.

Ambos buscam um meio de avançar e não sucumbir. O oásis é o símbolo do templo iniciático, a aquisição interior, o tecer do novo manto da alma.

A viagem segue o seu curso. As etapas se sucedem, mas as aquisições permanecem.

É dito: Cada mudança de estado de consciência é um dom.

A viagem, o percurso mesmo, é uma graça. Essa progressão ao longo dos sucessivos estados de consciência é o fruto de pura magnanimidade, embora um esforço extremo, da parte do candidato, seja necessário.

Mas a cada etapa sua aquisição é uma posse firmemente estabelecida que lhe permite passar à etapa seguinte.

Al-Ghazzali, um teólogo árabe, ligou-se ao sufismo após anos de pesquisa e tentou conciliar a ortodoxia islâmica e o sufismo; mas semelhante tentativa era, por definição, fadada ao fracasso.

Espírito sistemático, esse autor distingue três aspectos para cada estágio: o ensinamento, o estado de consciência e o comportamento.

Ele diz:
"A compreensão é o cepo da árvore. Ela gera os estados de consciência que correspondem aos ramos, que por sua vez geram um comportamento que corresponde ao fruto. Isso se aplica a todos os estágios do caminho que conduz a Deus."

Na prática, as experiências da vida não se desenvolvem de modo tão regrado assim, a não ser na literatura.

Na realidade, as diferentes fases e estados de consciência se interpenetram e se influenciam mutuamente.
Nisso não há nada de surpreendente, pois podemos constatar numerosas variantes sobre esse tema.

Arrependimento (TAUBA) A primeira etapa a vencer no caminho, segundo o sufismo, é o arrependimento ou conversão (tauba).

Quão justo e irrefutável é isso! Especialmente se considerarmos a noção tauba como sendo a consciência torturante de se estar separado da vida original.

Essa é a primeira força requerida para nos desviarmos do caminho largo da religiosidade inconsciente, a da massa, sharia. Isso só é possível graças a uma consciente inversão no caminho de vida (freqüentemente devida a fatores exteriores) e encetar um novo comportamento, tariqa.

Uma lenda conta que uma noite o sufi Ibrahim Ibn Adham ouviu um ruído no telhado de seu palácio em Balkh. Os servidores encontraram lá
um homem que, levado diante de Ibrahim, fingia procurar no telhado o camelo que tinha perdido. O príncipe, em vista do absurdo da empresa,
repreendeu-o acerbamente. O homem disse a Ibrahim que suas tentativas de encontrar a paz celeste e uma autêntica vida espiritual em meio a todo aquele luxo era igualmente tão absurda quanto procurar um camelo no telhado. A essas palavras, Ibrahim experimentou um profundo arrependimento e se afastou de suas riquezas. Uma mudança, uma reviravolta repentina pode acontecer por ocasião de circunstâncias fortuitas, dando início a uma nova fase de desenvolvimento da consciência.
Segundo os textos, trata-se de um momento decisivo em que, pela primeira vez, a pessoa se volta conscientemente para o campo de vida original, para Deus. Um golpe de sorte, uma decepção ou um encontro particular podem servir como desencadeadores desse processo.

Elevado por um instante acima de sua consciência comum, o buscador "contempla" o ideal a ser alcançado.

O importante é que, quando o coração desperte de seu sono indolente, o homem veja sua condição lastimável,pelo menos em relação a esse ideal.

Tudo isso ele recebe porque a graça lhe é concedida e a divina admoestação se faz ouvir no mais profundo do ser, com o ouvido do coração.

A prática de tauba, contudo, levou um grande número de sufis a uma tal aversão pelo mundo que eles caíram no outro extremo: ascese e pobreza tomaram a amplitude de um fenômeno cultural, em vez de permanecer apenas um contingente.

Desprendimento e pobreza (FAQR) O pobre é tão monopolizado por sua pobreza quanto o rico o é por sua riqueza.
Para os observadores, a rejeição do mundo é o aspecto mais surpreendente do sufismo.
Os tratados abundam em exemplos de vida de pobreza (faqr) e de afastamento do mundo.

Essas interpretações tipicamente exteriores de uma condição interior exercem uma influência daninha sobre os candidatos, especialmente os principiantes.

Por meio de uma redução de sua dieta alimentar e longos períodos de jejum, o candidato espera chegar ao desprendimento do mundo e desse
modo ser agradável a Deus.

Riqueza e preocupação com bens materiais, como em outras religiões, podem ser consideradas obstáculos ao caminho espiritual, o que resulta que a ascese e a total negação do mundo material tornam-se, não raro, o orgulho do sofrimento.

Um sábio instrutor observa que um excesso de ascese e de negação nada mais é que uma "expressão de ansiedade e medo". Essa manifestação de ansiedade diante da ordem de natureza na qual vivemos é tão perniciosa quanto um excesso de riqueza e de opulência.
Trata-se tão-somente de conhecer suas possibilidades e limites inerentes a cada circunstância.
A aversão pelo mundo consiste em considerar as coisas em seu aspecto efêmero, de modo que elas percam, aos nossos olhos, toda importância, facilitando-nos a tarefa de nos afastarmos delas.

Numerosos sufis consideram a pobreza e a ascese como a indicação de sua vitória sobre o mundo, seguros de que sua vida exterior reflete seu estado interior.
Mas, para aqueles que buscam uma vida interior, não é o mundo que constitui o principal obstáculo, e sim o eu.

Trata o teu eu como algo sem importância, embora inevitável.
Aquele que é mestre de seu eu é poderoso, aquele que se deixa governar por ele é fraco.
Os desejos e as tendências que levam o homem à ação são associados pelos sufis aos impulsos instintivos e à alma-sangue, nafs. O nafs é um sedutor, pelo qual não se pode deixar levar.

A alma (terrestre) é como um cavalo diabólico. Quando soltamos as rédeas,
podemos ter certeza de que seremos derrubados.

Algumas biografias mostram que uma mudança intervém na vida do sufi quando ele vê os verdadeiros obstáculos e seu caminho não é mais caracterizado pelos extremos, por privações,tanto no plano externo quanto
no interno.

O desprendimento interior é fruto da compreensão.

Enquanto a pobreza exterior está ligada à aparência, a pobreza interior está estreitamente relacionada com o "diminuir" (literalmente: desfazer-se), com a "rendição", um estado ulterior.
Não me devolvas aquilo que me retirastes e não me deixes ver o meu eu,após teres dele me protegido.

Confiança em Deus e auto-rendição (TAWAKKUL). A confiança em Deus é um estado de despreocupação interna e externa, resguardado pela solicitude plena do amor de Deus.

Ela representa o próximo estágio importante no caminho do sufi. É um estado de consciência extremamente rico e inspirador, como testemunham estas duas citações:

Encontra o repouso aquele que impele o amor aos confins do seu coração.

Quando o coração está vazio, a renúncia ao mundo aí penetra, prodigalizando a confiança em Deus.

Mas o contrário também é correto:
Quando a confiança em Deus floresce de maneira sadia, a renúncia também vigora, pois a justa confiança em Deus possibilita a renúncia correta.

Essa fase da renúncia e do desprendimento é de grande importância e também cheia de nuanças, pois se relaciona à libertação das forças do eu que dirigem a personalidade, e isso não pode ser feito às pressas.
Uma nova consciência nascente e responsável deve servir de fundamento ao processo.

Grande vigilância e compreensão são necessárias ao candidato que também tem de dispor de uma boa estabilidade interior, de um equilíbrio de alma.

Somente então ele pode confiar inteiramente seu destino ao próprio Deus interno.

Possuir total certeza, denomina-se fé, tawakkul.

Paciência (SABR) A paciência é para a fé o que a cabeça é para o corpo.

Ela consiste em permanecer em harmonia tanto na provação como no bem-estar.
A longanimidade perfeita (sabr) diante dos golpes do destino e do pesar representa, no Oriente Médio, um dos pilares da senda.

Distinguem-se três níveis de realização:
1. esforçar-se por ser paciente,
2. suportar pacientemente as tentações,
3. mostrar-se paciente em todas as circunstâncias.
Essa sutil distinção é um exemplo da extrema precisão com que os sufis
definem as fases e os estados internos do caminho. Inúmeros relatos atestam
da necessidade da perseverança e da paciência.

Aqui, a figura clássica que descreve a vitória sobre o eu, a travessia do deserto, é bastante utilizada. É uma força especial que faculta o exercício da paciência, uma força graças à qual, no final de um longo treinamento, o candidato chega à impassibilidade interior.

De um lado há a orientação indefectível para Deus, a perseverança com Deus, e de outro lado, a abertura constante para a força divina na hora da tentação, a perseverança sem Deus. São tantas as pedras que se acumulam no caminho! Para alcançar o objetivo é preciso superar inúmeros obstáculos, o que é ilustrado pela curta história que segue:

Um dia, um homem chegou à casa de Ash-Shibli e perguntou-lhe:
Qual é a prova mais difícil de suportar para aquele que se exercita na paciência?

Ash-Shibli respondeu: A paciência em Deus.
Não, disse o homem. Ash-Shibli: A paciência para Deus. Não, disse o homem. Ash-Shibli: A paciência com Deus. Não, disse o homem.
Ash-Shibli: Então, o que é? E o homem respondeu: A paciência (de tudo suportar) sem Deus.
A essas palavras, Ash-Shibli gritou tão forte que quase rendeu a alma.

Amor (MAHABBA) e diminuição (FANA). O amor é o fruto da compreensão.

Se por um lado o amor terrestre nos liga a uma outra pessoa, a um objeto ou a um interesse qualquer, por outro lado o amor divino possui uma totalmente outra definição: é a força que conduz de etapa em etapa, ao longo de um caminho de evolução, até se tornar um estado de consciência.

Assim, o conceito Arif, aquele que possui o entendimento, aplica-se freqüentemente aos sufis avançados.

Al-Ghazzali escreveu:

"O amor sem a compreensão é impossível, pois não se pode amar o que não se conhece."

Na literatura sufi, a noção "bem amado" representa um papel importante, pois a pessoa amada é o símbolo da ligação com o divino.

"O amor, é dito, é um fogo no coração, que queima tudo o que o amado não deseja."

O amor, nascido do conhecimento interior, representa o último estágio do caminho.
No início, é a obediência absoluta a um mestre (shaikh) que é exigida do candidato. O estágio final é marifa, o conhecimento interior divino.

Somente o candidato avançado conhece a força e o potencial do verdadeiro amor servidor, que é a única via de reintegração com Deus.

Para um simples fiel da religião muçulmana (islã significa submissão à vontade de Deus), é quase impossível ultrapassar o estágio de obediência a um mestre.

Por isso, coloca-se o amor no mesmo nível que a diminuição do eu.

O amor devotado a Deus, que não exclui nenhuma parte da criação, alimenta-se da aspiração à revelação divina e se consolida pelo rasgar dos véus que impedem a contemplação da transcendência interior.

Após o esquecimento temporário, há a asnai, o conhecimento reencontrado da origem.
O estágio de diminuição do eu é indispensável para encontrar o conhecimento do início absoluto e do esplendor da eternidade.

Este último degrau no caminho da iniciação sufi não é, em realidade, um fim.
Poder-se-ia dizer que aqui se perde o rastro daquilo que nossa consciência natural pode conceber.
A partir daí, o sufi caminha para o verdadeiro objetivo da existência humana,o advento do homem-espírito, a realização final do plano divino.
Embora seja impossível comunicar algo sobre esse nível de elevação do processo, pode-se, contudo, decodificar os escritos redigidos pelos mestres a seus alunos.

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