quarta-feira, 3 de abril de 2013

O Evangelho da Verdade - Valentino



Ele se transforma, por assim dizer, nos seres e nas coisas, que, por sua vez, se transformam nele.

Já não há objetos diante dele, ele torna-se o sujeito que tudo abarca.  

Pode-se dizer que a Gnose consiste em uma experiência espiritual direta.
Com base nessa compreensão da Gnose, fica evidente que os fundadores das religiões e das escolas de mistérios, desde a noite dos tempos, eram gnósticos, “portadores do conhecimento”, isto é, aqueles que ao longo de suas vidas experimentaram a unidade de todas as coisas em Deus.
Assim disse Mestre Jesus: “Eu e o Pai (a fonte primordial divina) somos um”.
E Paulo: “Agora vemos por espelho em enigma (isto é, por meio de nossos sentidos através dos quais as coisas nos parecem objetos enigmáticos), mas então veremos face a face”, ou seja, olhos nos olhos, de forma direta, imersos na essência de todas as coisas.
Ou como disse Buda: “O que percebo em minha contemplação é a verdade. O que pratico com devoção é a verdade, pois, vê, eu mesmo tornei-me a verdade”.
E o hinduísmo declara: “Tat tvam asi”. Tu és o ser. Tudo o que está à tua volta e vês como objeto, na realidade, é tu mesmo.
Mas, com a tua consciência comum não podes percebê-lo.
Além dessa noção geral, a Gnose tem um significado específico ligado a uma religião ou filosofia que surgiu na mesma época que o cristianismo e floresceu nos primeiros séculos de nossa era.
Os grandes nomes dessa corrente são Madalena, João, Tiago, Mateus, Marta, Tomé, Filipe, Salomé, Mani, Cerintho, Paulo, Menander, Saturnilo, Silas/Silvanus, Priscila, Euphrates, Marcion, Amônio Saccas, Basílides, Valentino, Carpócrates, Bardesanes, Monoimus, Cerdo, Theodotus/Panteno, Ptolomeu, Heracleon, Philon, Hipatia, Porfírio, Jâmblico, Clemente, Orígenes, Proclo, Dionísio Areopagita. Dessa Gnose histórica (em sentido literal) provêem os escritos gnósticos descobertos em 1945, em Nag Hammadi, no Alto Egito.
O Evangelho da Verdade, que se estima ter sido escrito por volta da metade do segundo século, estava entre os documentos descobertos em Nag Hammadi.
A Igreja, com o passar do tempo, tornara-se incapaz de uma experiência espiritual direta com o divino, tornara-se dogmática.
Ela condenou os escritos gnósticos como errôneos, heréticos, e não os admitiu no Novo Testamento.
Para essa Igreja romana, a Gnose histórica era, e ainda é, uma doutrina falsa.
Mas, sob o ponto de vista de que o cristianismo original foi o instituído pelo Mestre Jesus, percebe-se que esse cristianismo efetivamente se refere a uma experiência espiritual, precisamente como a Gnose da mesma época.
Não há diferença essencial entre o cristianismo espiritual e a Gnose histórica, até mesmo no que concerne aos símbolos.
Desse ponto de vista, Jesus foi um gnóstico tal como Valentino e Mani foram cristãos espirituais, e também Paulo e João.
A hostilidade, ainda atual, do cristianismo tradicional contra a Gnose histórica e contra a Gnose em geral começou quando, em benefício do dogmatismo e do poder romano, desapareceu do cristianismo o sentido espiritual interior fundamental, ensinado por Jesus.
Verificamos, no entanto, ao comparar os documentos do cristianismo original com os pertencentes à Tradição da Gnose histórica como, por exemplo, o Evangelho da Verdade, que o sentido revelado por um confirma o significado apontado pelo outro.
Valentino, nascido no Egito, por volta do ano 110 d.C., é um dos gnósticos mais conhecidos e provavelmente o autor do Evangelho da Verdade.
Por volta do ano 150, Valentino foi escolhido bispo da comunidade cristã em Roma. Desse fato é possível concluir que nessa época ainda não havia separação entre "cristãos" e gnósticos.
Sobretudo, parece que nessa primeira comunidade cristã reinava certa liberdade. Seus bispos eram eleitos e não havia a figura do Papa.
Ao retornar para o Egito, Valentino fundou uma escola filosófica religiosa.
Valentino morreu no ano 170, no entanto suas idéias sobre o surgimento do mundo e o desenvolvimento da humanidade permaneceram através de alguns fragmentos de suas cartas e alocuções, bem como do Evangelho da Verdade, que muito provavelmente é de sua autoria.
Um testemunho de um dos Pais da Igreja talvez nos permita compreender melhor Valentino: “Valentino afirmava que, tendo visto um menino muito jovem, lhe perguntou quem era, e que o menino lhe respondera:
Eu sou o ‘Verbo’.” Essa é uma bela referência à compreensão característica dos gnósticos: experiências interiores feitas pela consciência espiritual.
Valentino vê em seu interior, como em uma visão, um menino, uma criança.
Em contraposição ao homem terrestre, ele se torna consciente do Outro, o Verbo divino eterno, luz, vida, sabedoria.
Esse Verbo é ainda pequeno como uma criança.
Isso significa que Valentino percebe sua identidade espiritual, seu verdadeiro ser, ainda por desenvolver-se, mas que é incondicionado e capaz de desenvolver-se como uma criança. Sem preconceitos, sem desconfianças, sem opiniões rígidas.
Assim simboliza Valentino o primeiro ingresso auspicioso do mundo divino em sua consciência. Foi o início de sua iluminação, durante a qual o mundo divino, o ser espiritual, desenvolveu-se cada vez mais.
De maneira cada vez mais abrangente a estrutura e as forças do mundo divino revelaram-se para sua consciência.
A mesma experiência foi vivida por Paulo: “[…] porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de Deus […] Assim também ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus. Mas nós não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus.
E Paulo pergunta a seus companheiros: “Ou não sabeis quanto a vós mesmos, que Jesus Cristo está em vós?”
O gnóstico Paulo é consciente de sua verdadeira identidade e da identidade de seus companheiros, homens espirituais.
Valentino nos relata seus pensamentos a respeito do mundo divino no Evangelho da Verdade.
Ele fala da alegria e do repouso que o preencheram desde que se tornou consciente da realidade espiritual. Valentino diz que já não faz parte dos que caíram nos reinos dos infernos, mas que se encontra no mundo onde já não há cobiça, nem sofrimento, nem morte.
O mundo exterior, inferior, é o inferno, um mundo de conflitos, de angústias, de cobiça, de sofrimento e de morte, no entanto esse mundo infernal já não influencia sua vida.
Os seres que se tornaram conscientes da Verdade, afirma Valentino: “[…] repousam Naquele que está em repouso, não são atormentados pelo anseio pela Verdade e não são confundidos na busca pelaVerdade. E o Pai está neles, e eles estão no Pai. Porque eles são perfeitos e inseparáveis do verdadeiro Bem e não sofrem com a carência de qualquer coisa, mas vivem no repouso e são constantemente revigorados pelo Espírito”.
E dizemos aos que não se encontram nesse repouso e nesta alegria: “[…] saibam que eu já não posso falar sobre outra coisa depois de ter estado uma vez nesse lugar de repouso”.
O objetivo único do autor do Evangelho da Verdade é indicar para nós, que somos atormentados por essas carências, o caminho para livrar-nos delas.
O caminho para salvar-nos dos reinos dos infernos, da carência da verdade e do desejo aflitivo pela verdade é o conhecimento, o conhecimento da verdade.
Esse caminho começa com a compreensão de que nos encontramos em ignorância e engano sobre a verdade e sobre nós mesmos.
Esquecemos e negamos nossas raízes e as do mundo.
É do mundo divino, do Pai – diz Valentino – que fomos criados, como seres espirituais, de quem recebemos tudo e por quem somos incentivados a progredir em nosso desenvolvimento.
Entretanto, conservamos nosso corpo, assim como nossos pensamentos e sentimentos que dele provêem, como bens pessoais; cremos que no espaço a matéria visível – portanto mortal – tal com como estrelas e planetas – são a única realidade.
E com base nesse preconceito, nessa crença, reprimimos o Espírito e não reconhecemos que ele quer operar em nós e no mundo.
Dormimos e acreditamos que nossos sonhos são a realidade.
Contrariamente ao mundo do Espírito, nossas percepções sensoriais do mundo material nos apresentam uma realidade de segunda ordem, tal como são os sonhos em relação ao estado de vigília.
Nossa ignorância em relação ao Pai, diz Valentino, nossa incapacidade de perceber o Espírito, em nós e fora de nós, gera medo, confusão, instabilidade, indecisão, divergência, muitas ilusões e vãs ficções que são como pesadelos durante o sono.
Esse estado é acompanhado da crença na idéia preconcebida de que a matéria é a única e definitiva realidade. “[…] Aqueles que rejeitaram o sono da ignorância já não vêem o sono como realidade… eles deixam o sono e os sonhos da noite para trás. O que há de melhor para o homem é despertar-se e converter-se…”.
O primeiro passo no caminho da experiência do “eu” verdadeiro e da verdade é reconhecer que nos enganamos a respeito de nós mesmos e do mundo.
Que nossas considerações de orientação puramente materialista sobre a realidade nada são senão sonhos.
Porém, uma concepção gnóstica é possível com base em uma abertura a uma imagem espiritual do mundo, que se dá por meio da fé gnóstica.
Mas, como a autêntica realidade aparece? Como acordar e tornar-se consciente? Façamos algumas analogias para explicar como acontece esse despertar interior de uma consciência gnóstica.
Tomemos um exemplo simples da vida comum: já aconteceu a todos nós de não lembrarmos o nome de alguém conhecido. Sabemos o nome dessa pessoa, sentimos que seu nome está na “ponta da língua”, que está em algum lugar obscuro de nossa consciência, no entanto, embora façamos um imenso esforço mental para lembrá-lo, não conseguimos.
Temos a sensação desagradável e irritante de que esse nome é como que impedido de vir à nossa consciência. Entretanto, ao deixarmos o problema de lado e nos ocuparmos com outra coisa, de repente o nome surge em nossa memória, e respiramos aliviados.
Um último exemplo: temos uma vida social e uma vida privada às quais estamos tão habituados que não percebemos o quanto elas contradizem profundamente nosso coração.
Habitualmente, consideramos que as circunstâncias particulares nas quais nos encontramos são realmente necessárias e fundamentais para nossa existência.
Entretanto, sentimos uma tensão vaga e um conformismo, capazes de nos levar ao desespero.
Então, temos a impressão de que nossa vida não corresponde à nossa natureza, que teríamos de mudar de direção.
Mas, por medo das conseqüências, acabamos por seguir o mesmo caminho.
A repentina lembrança de alguma coisa esquecida; o sentimento de ter reprimido um antigo ideal e a consciência de levar uma vida mentirosa podem ser comparados à compreensão gnóstica, com a diferença que esta é muito mais profunda e global.
O gnóstico chega de repente a um insight de que ele esqueceu o verdadeiro sentido de sua vida.
Que sua vida nesta terra e suas tentativas de encontrar felicidade, riqueza, sucesso, ou seu impacto no mundo material já não o contentam e que o mais profundo e espiritual de sua alma não está ativo.
Ele compreende, enfim, que sua vida é uma grande ilusão.
Para ele, essa é a única visão possível da vida,e apesar de tudo, ela é bela.
Essa idéia traz conseqüências. O que reprimimos até o presente se faz sentir e clama por seus direitos. Se assim não fosse, o que reprimimos jamais poderia vir à tona.
Dessa maneira, o núcleo espiritual fundamental em nós que é eterno nos convida, nos chama, sim, nos tira de nossa ordem para que ele possa evoluir e tornar-se consciente.
Passamos a perceber em nós uma nova receptividade ao espiritual, uma abertura ao que temos de mais profundo,uma fé na Gnose.
Ora, são essa fé e essa abertura que nos permitem adquirir a compreensão.
A compreensão, o despertar gnóstico, de acordo com a fé gnóstica, nada é senão tornar-se novamente consciente daquilo que até o presente havíamos abandonado, esquecido, dissimulado ou reprimido.
À medida que esse fundamento espiritual oprimido se revela à consciência, damo-nos conta do sentido da vida há muito tempo esquecido e desmascaramos a relatividade, o erro, a mentira e a superficialidade de nossa vida comum.
E aspectos de nossa consciência há muito abandonados tornam-se facilmente ativos outra vez.
Dessa maneira, é possível perceber que as concepções gnósticas não são fórmulas ou teorias intelectuais, mas que se trata aqui de tornar-nos conscientes de nosso ser interior profundo.
A maior parte das tentativas filosóficas e teológicas modernas de compreender os gnósticos sofre da deficiência de acreditar que o conhecimento gnóstico é mera especulação do pensamento sobre a situação do ser humano no mundo.
Quando os gnósticos dizem que são libertos pelo conhecimento entendem que passam do estado inconsciente ao consciente do que que há de mais profundo neles, que essa nova consciência age neles e os conduz à libertação; o que alguns teólogos compreendem de maneira errônea quando consideram que os gnósticos se sentem libertos graças a um conhecimento secreto especial, pois acreditam que determinadas fórmulas e teorias sobre o mundo e a natureza humana conduziriam os gnósticos à libertação.
No entanto, para o gnóstico, a libertação pelo conhecimento significa que seu ser interior mais profundo voltou à consciência e à vida, e assim, age nele e o liberta de sua superficialidade e de sua inércia.
Como Valentino, o gnóstico adquire a consciência de sua verdadeira identidade espiritual, ele ouve o Verbo divino, percebe o mundo divino, no início, como uma criança particularmente dotada, e depois, cada vez de forma mais ampla e intensa.
Se o chamado ressoar no mais profundo de nossa alma, sugerindo a possibilidade de tornar-nos conscientes, de despertar em nós a eternidade que nos libertará, poderemos apresentar duas reações: ter fé ou não.
Pode acontecer também que, profundamente tocados, aceitemos imediatamente escutar o chamado e a ele responder.
O Evangellho da Verdade a esse respeito expõe: “Quando é chamado [pelo nome], ele ouve, responde e volta-se para aquele que o chama, eleva-se até ele e, nesse chamado, obtém a Gnose. E, como agora sabe, ele faz a vontade daquele que o chamou”.
Essa seria a reação apropriada do ser humano a esse chamado, abertura e resposta positiva. Isso é fé gnóstica.

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