terça-feira, 27 de maio de 2008

Gnosis por G.R.S. Mead

Até bem recentemente o estudo do Gnosticismo era tratado exclusivamente como um departamento de heresiologia ou, na melhor hipótese, como história da Igreja primitiva. O termo tem sido geralmente adotado para denominar um amplo movimento herético, em formas muito variadas, mas de uma tendência característica, exclusivamente dentro das fronteiras do Cristianismo nascente e em desenvolvimento.


Nos últimos anos, porém, foi demonstrado, por diferentes linhas de pesquisas convergentes , que a noção de Gnosis, em seus elementos essenciais, era amplamente difundida antes do aparecimento do Cristianismo, principalmente entre os cultos dos Mistérios helênicos e das comunidades místicas, ou nas formas de religião pessoal em que elementos orientais e gregos eram misturados.


Movimentos desta natureza, guardando como tesouro uma Gnosis interior, continuaram a existir em paralelo, mas inteiramente independentes da Igreja em crescimento nos três primeiros séculos. O Gnosticismo, então, não mais deveria ser considerado simplesmente como o nome de um ramo dentro da Igreja nascente.


A Gnosis foi um fenômeno religioso muito mais amplamente difundido e deveria ser tratado como um elemento característico da história geral da religião. O que foi anteriormente chamado de Gnosticismo é visto, dessa forma, como sendo apenas um departamento, ainda que um departamento importante, da história da Gnosis. Seria preferível que fosse referido como a Gnosis cristianizada, ou como a Gnosis cristã, sendo que este último termo pode ser reservado especialmente para as opiniões de Clemente de Alexandria ou de Orígenes.


Assim, verificamos que no Gnosticismo característico cada discípulo pode sempre fazer complementações e transformações dos ensinamentos de seu mestre, de forma que refinadas noções populares primitivas, juntamente com as visões fantasiosas mais pessoais, permeiam estes ensinamentos, da mesma maneira como as crenças dos Mistérios orientais e as concepções mágicas mudam de roupagem com a filosofia grega.
Antes de lidar em mais detalhe com o significado de Gnosis em seus aspectos mais elevados, fora dos limites da cristandade, pode ser útil resumir o que Liechtenhan tem a dizer de seu significado entre seus partidários dentro das fronteiras do Cristianismo.


Ele menciona que, por Gnosis, usualmente compreendemos conhecimento especulativo, no sentido de uma explicação correta do mundo em resumo, filosofia. É verdade que a busca dos Gnósticos era, essencialmente, também uma tentativa de explicação dos processos do mundo. Porém, tal explicação não era uma interpretação a ser descoberta simplesmente por si mesmos. Eles não a procuravam usando o seu intelecto sem ajuda, mas por meio de competentes revelações de natureza religiosa. De forma alguma eles se estabeleceram como filósofos em contraste com os 'piedosos', eles também eram piedosos, religiosos.
Apenas que, em geral, procuravam sua religião em combinação com o conhecimento dos processos do mundo, no sentido da "gnosis sobre quem éramos e no que nos tornamos; onde estávamos e onde viemos parar; para onde nos dirigimos e onde somos redimidos; o que é a geração, e o que é a regeneração", como formulam os Extratos de Theodotus, publicados por Clemente de Alexandria .


Portanto, o objeto de suas buscas era não somente a Gnosis do mundo, mas também a Gnosis da salvação, como, de fato, fica manifesto abundantemente, por todos os lados, tanto dentro como fora da cristandade. Eles, continua Liechtenhan, não querem filosofia além da religião, ou paralela a ela; sua única busca era a religião em sua perfeição ou consumação. Isto significava para eles o emprego da mente espiritual nos assuntos mais elevados correspondentes a ela, sua ocupação com o âmago espiritual e a fonte da realidade, da atualidade, com o puro, o eterno, o ilimitado.

A característica desta religião era que seus seguidores não esperavam entrar em comunhão com o mais elevado somente pelo esforço moral e pela fé em Deus, mas também por meio do pensamento, conhecimento, imaginação, sentimento. E era precisamente na Gnosis que eles viam a função mais elevada da religião.Porém, devemos ficar de prontidão contra a interpretação do pensamento como sendo puramente o intelecto raciocinador. Pois, se os Gnósticos se posicionaram contra o mundo, não como filósofos, mas no duplo sentido de serem conhecedores e espirituais, devemos nos perguntar se, como o assunto do mundo espiritual é a Gnosis, o órgão deste modo de conhecer é precisamente o espírito. Se, além disso, o próprio espírito, como uma substância ou essência do mundo imaterial, é o órgão para a compreensão daquele mundo, então sua função característica de Gnosis não é nada mais do que a compreensão das coisas daquele mundo supra-sensível.E, finalmente, se este mundo invisível é inacessível para nós em nosso estado natural normal e só pode se abrir a nós pela revelação, então o conhecimento espiritual ou Gnosis tem como objetivo nada mais do que a revelação.Segue daí que a posse da Gnosis significa a habilidade para receber e compreender a revelação. O verdadeiro Gnóstico é aquele que conhece a revelação interior ou oculta desvelada e que também compreende a revelação exterior ou pública velada. Ele não é alguém que descobriu a verdade a seu respeito por meio de sua própria desamparada reflexão, mas alguém para quem as manifestações do mundo interior são mostradas e tornaram-se inteligíveis.


Resumindo, o que Liechtenhan considera, e com razão, como a principal característica da Gnosis cristianizada é a revelação. É verdade que a Gnosis, para a maioria, é igual à revelação; mas o objeto desta revelação não é simplesmente o mundo espiritual, interior, invisível, imaterial ou supra-sensível. Isto, como veremos, é o começo e não o fim da Gnosis, quer seja cristianizada ou não. Antes do Cristianismo, bem como durante o desenvolvimento da igreja dos primeiros três séculos, a idéia da Gnosis, como já foi dito, estava bem disseminada. Esta principal característica de religião oriental influenciou fortemente não só as religiões helenísticas diretamente e o mundo grego indiretamente, mas também o pensamento geral do ocidente nos primeiros séculos do Império Romano.


Escrevendo sobre a influência das religiões orientais no paganismo romano, Cumont nos diz: "De forma geral, havia a convicção persistente de que a redenção e a salvação dependiam da revelação de certas verdades, do conhecimento dos deuses, do mundo e de nossa própria personalidade; a religiosidade tornou-se Gnosis. "Porém, para descobrir o que Gnosis significava para os seus melhores partidários no mundo não-cristão, devemos voltar aos escritos dos antigos místicos e deixá-los falarem por si mesmos.


A Gnosis é necessariamente Gnosis de algo, mas do que? É idêntica a resposta dada tanto pela grandiosa literatura trismegística como pelos populares Papiros de Magia, bem como, de fato, pela maioria de nossas fontes: definitivamente ela é a Gnosis de Deus. Gnosis não é conhecimento intelectual. Na verdade, é concebida como poder ou virtude. Neste particular pode ser relevante notar que um de seus sinônimos é fé, como este termo é usado na teologia helenista. Assim, na inscrição do místico frígio Aberkios, lemos (V.12): "A fé foi sempre meu guia e em todos os momentos proporcionou sustento". Também o místico de Ísis, Apuleio, nos diz que, após sua segunda iniciação, ele estava 'pleno de fé' e "constante no serviço divino e na verdadeira religião "Os Papiros de Magia personificam a fé e se referem ao 'Círculo da. Verdade e da Fé', aparentemente sendo igualado com a famosa 'Planície da Verdade' de Platão, que tipifica o estado espiritual tal como é explicado, realmente, tanto pelos hermetistas como por Plotino, num sentido que possibilita compará-la ao terceiro céu de Paulo. De acordo com a escola trismegística, a fé é a compreensão ou percepção espiritual; é a virtude ou poder da mente espiritual, que, dizem, encontra seu suporte na 'reta fé' da Gnosis.


De fato, também na Gnosis cristianizada, antes da escola de Valentino, fé e Gnosis parecem ter sido termos sinônimos. Mais tarde, porém, uma nítida distinção foi demarcada entre elas devido à controvérsia teológica.Se na literatura trismegística, ou tradição do Três-vezes-grande Hermes, a Gnosis é chamada a 'Religião da Mente', a Mente deve ser compreendida como a Mente Divina ou Espírito. Pois, na mesma tradição, a Gnosis é também referida como o 'único amor de Deus', a 'verdadeira filosofia' ou 'amor à sabedoria', o que também abarca, é verdade, a ciência da natureza e do homem, como na maior 'parte das formas de elevado misticismo. Porém, esta sabedoria também é caracterizada como 'adoração', ainda que não no sentido de um culto externo, mas como uma devoção interior ou louvação ao espírito. 'Devoção é Gnosis de Deus’, pois "as sementes de Deus, é verdade, são poucas, porém vastas, corretas e boas são a virtude e o autocontrole, a devoção" (Corpus Hermeticum , IX. 4). A Mente Divina é também chamada o Pastor de Homens, o Poimandres, e também Amor Divino (Sermão Perfeito, I). Para sermos conhecedores devemos ser amantes, devemos ter "o amor único, o amor à sabedoria-amorosa, que consiste na Gnosis da Divindade unicamente, a prática da contemplação perpétua e da piedade sagrada" (Sermão Perfeito, XII).A Gnosis da Mente é de uma natureza espiritual, pois é operada pelo princípio espiritual no homem: "Esta é, meu filho, a Gnosis da Mente, a visão das coisas divinas; ela é a Gnosis de Deus, pois a Mente é de Deus" (C. H., IV. 6).


No hermetismo, Gnosis é a mais elevada, ou melhor, a síntese das sete virtudes ou poderes espirituais. As sete virtudes são referidas como: Gnosis, contentamento, autocontrole (temperança), moderação, retidão, comunhão com tudo e verdade. Mais além destas vêm a tríade de Vida, Luz e Bem, completando o dez, ou número 'perfeito' (C. H., XII. 8-9).O 'fim' ou 'perfeição' de toda esta disciplina era 'conhecer a Deus', que é essencialmente Aquele 'que quer ser conhecido e é conhecido pelos Seus', Gnosis não é conhecimento a respeito de alguma coisa, mas contato direto ou comunhão, o conhecimento de, no sentido de familiaridade imediata com a divindade.E, dessa forma, na louvação que apropriadamente conclui O Tratado Sobre a Perfeição, lemos: "Damos graças a Ti, Ó Ser Mais Elevado, pois por Tua graça recebemos a luz da Gnosis. Ó Nome inefável, em lugar do qual, em nossa adoração, usamos a apelação 'Deus' e, em nosso agradecimento dirigimo-nos como 'Pai', pois Tu demonstrastes a todos nós, homens e mulheres uma boa vontade paternal, afeição, amor e, numa atitude extremamente doce, por benevolência, nos dotastes de mente, razão e Gnosis, mente para que possamos conhecer-Te, razão para que possamos estimar o Teu valor e Gnosis para que ao Te reconhecer possamos nos regozijar. "Tornados inteiros por Ti, agora nos regozijamos que Tu Te mostrastes inteiramente a nós, regozijamo-nos que Tu, pela visão de Ti mesmo, tornaste-nos deuses apesar de ainda no corpo. Conhecer a Tua grandeza é, para o homem, a bem-aventurança que leva a Deus. Alcançamos a Gnosis de Ti, Ó Luz, luz sensível somente à inteligência; a Gnosis de Ti, Ó Vida, vida de toda a vida humana; a Gnosis de Ti, Ó Útero fecundo. de todos (que são renascidos); a Gnosis de Ti, Ó Tu eterna Permanência daquela fecundidade inerente à geração da paternidade."Por este motivo, em nossa adoração a Ti, não ansiamos por nenhuma outra recompensa de Tua bondade, a não ser que Tu condescendas a nos manter constantemente na Gnosis de Ti mesmo, quando tiveres orado para não nos permitir cair desta vida elevada de santidade. "


É bastante evidente nestas passagens que Gnosis é uma dádiva, uma graça do espírito; por isso, ainda que a dádiva seja de Deus, a sua luz poderia ser passada adiante, pois o espírito vive para doar. "Preencha-me com Teu poder e com esta Tua graça, para que eu possa dar a luz aos que vivem na ignorância" (C. H., I. 32), assim ora o suplicante por Gnosis.Também é evidente que a mente é a mente espiritual intuitiva, a contraparte humana daquela Mente ou Mônada Divina na qual devemos ser mergulhados ou batizados, de acordo com a doutrina do tratado chamado The Cup (O Cálice), e que a concepção inteira de Gnosis é devida à religião e não à filosofia. A salvação pela Gnosis é tornar-se inteiro, é um completar-se ou preencher-se espiritualmente, da natureza da apotheosis ou theiosis, isto é, da transfiguração da vida de separação para a vida divina auto-suficiente. Na literatura trismegística, 'aqueles que estão em Gnosis' são contrastados com os homens do mundo, pelos quais dizem que são "ridicularizados, odiados e até mesmo levados à morte" (C. H., IX. 4).

Porém, em todas essas tribulações, os que são piedosos são sustentados pela sua consciência da Gnosis. Não só isso, mas para a pessoa que está realmente 'na Gnosis':... "todas as coisas, ainda que sejam ruins para os outros, são boas para ele; e mais, cada intriga contra si ele traduz para o plano da Gnosis e somente ele transmuta todos os males em benefícios." (C.H., IX. 4)Dizem que esta consciência espiritual é iniciada por uma iluminação, geralmente ocorrendo em uma visão, mas de uma natureza viva e inteligível.O iluminador é o Logos, a Luz de Deus, tanto para nossos 'suplicantes trismegísticos', como para os terapeutas de Philo, ou suplicantes, como também ele os chamava. Por exemplo, encontramos esse místico e platonista judeu alexandrino escrevendo: 'Pois o Senhor é a minha Luz e o meu Salvador', como é cantado nos hinos [ou seja, nos salmos]. Ele não só é luz, mas o arquétipo de todas as outras luzes; na verdade, bem mais antigo e sublime que o modelo arquétipo [de todas as luzes], já que este último é a Sua Palavra (Lagos). Pois o modelo universal é a Sua Palavra plena, a Luz, enquanto Ele mesmo é como nada para as coisas criadas." (De Som., §13).

A iluminação é um preenchimento, uma conclusão, uma plenitude (pleroma), como a frase de Fílon sugere acima: 'sua Palavra plena'. E assim exclama o autor do Poimandres: "Tu nos preenchestes, Ó Pai, com a visão do bem e do reto; com um tal espetáculo que o olho de minha mente ficou inteiramente tomado de reverência." (C.H., X. 4)E, dessa forma, também no tratado sobre o renascimento, o suplicante ora: "E agora me preencha com as coisas que faltam em mim". (C. H., XIII. 1)A visão do Bem, na forma da Beleza da Luz Imortal, sobrevem, inicialmente, em arrebatamento, enlevo ou êxtase do senso corporal. Para absorver profundamente a visão, o homem do mundo deve estar totalmente sereno."Pois tu poderás vê-la quando não puderes dizer nenhuma palavra a seu respeito. Porque a Gnosis e a visão do Bem é o silêncio sagrado, dando descanso a todos os sentidos. Pois aquele que a percebe não pode perceber nada mais, nem tampouco aquele que a contempla pode ter visão de nada mais, ou ouvir qualquer outra coisa, ou mover qualquer parte de seu corpo. Desligado de qualquer sentido ou movimento de seu corpo, ele permanece imóvel."Então, banhando toda a sua mente em luz [o batismo místico], essa ilumina também toda a sua alma, eleva-a através do corpo e transmuta tu do em si no ser essencial. Pois é impossível, meu filho, que a alma possa ser tornada divina pela visão da Belezaser tornada divina pela visão da Beleza de Deus quando ainda no corpo de um homem; ela deve ser separada do seu corpo e transformada, tornando-se divina." (C.H.,X.5, 6).


De acordo com a crença dos místicos, a Gnosis era acionada por meio de uma transformação essencial ou transmutação, levando a uma transfiguração. Primeiramente, havia uma 'passagem através de si mesmo', uma morte mística e, 'finalmente, um renascimento na natureza do ser espiritual de um deus.Sem dúvida, nos círculos internos dos místicos, o principal interesse era nesta apoteose ou transfiguração efetuada por meio da Gnosis ou da visão de Deus. Acreditava-se que a alma humana separada era transmutada numa natureza ou essência que era espiritual ou angélica. Muitas passagens poderiam ser citadas de numerosas tradições para ilustrar esta idéia central, porém considerações de espaço nos restringem a uma única citação de Philo, que escreve em sua Vida de Moisés (III. 39): "Ele (Moisés) estava prestes a navegar para o céu e, abandonando a vida da morte, para ser transformado na vida imortal; pois ele tinha sido chamado por Deus, o Pai, que o estava transformando de uma díada, alma e corpo, na natureza da mônada que transcende todos os elementos, restaurando-o num todo através da totalidade na mente mais gloriosa como o sol."


Os illuminati poimandristas ou trismegísticos, se referem precisamente à mesma coisa quando dizem:"É pela transmutação em daemons [ou seja, espíritos ou anjos] que as almas possuem a fonte da imortalidade e, assim, dançam outra vez no coral dos deuses (ou juntam-se à dança do coral dos deuses)” "e esta é a mais perfeita glória da alma." (C.H., XIII. 7)Tudo isso estava relacionado à doutrina da união espiritual ou 'casamento sagrado', como era chamado, um assunto que demandaria por si só um artigo para apresentar simplesmente um esboço e a transformação efetuada desta forma era considerada como o nascimento de uma nova criaturaEra essa transmutação substancial num ser espiritual que tornava possível a Gnosis, conferindo o poder de visão divina por meio do senso unitário da inteligência. A nova consciência era concebida como resultado da impregnação do ser interior, assim diziam eles, pelos raios, emanações, eflúvios ou influências do esplendor divino.

Num sentido ético, essas sementes eram, como já vimos, virtude, autocontrole, devoção e, em geral, o conjunto das virtudes. O 'final feliz' daqueles que colocavam seus pés na senda da Gnosis era, portanto, "tornarem-se deuses" (C. H., I. 26). Este 'fim' ou 'aperfeiçoamento' é um termo técnico dos mistérios, o locus classicus que Reitzenstein já encontra firmemente estabelecido no Banquete de Platão (210 E): "Aquele que foi instruído até este ponto nos Mistérios do Amor, pela sucessiva reta contemplação de coisas belas, se for até o derradeiro 'final' desta iniciação, terá a visão de uma Beleza cuja natureza maravilhosa (ou seja, Beleza absoluta, simples e duradoura, que sem diminuir e sem aumentar e sem qualquer mudança, é concedida à beleza mutável de todas as coisas). Aquele que ascender além destas belezas e, sob a influência do verdadeiro Amor, começar a ter a visão daquela Beleza, quase chegou ao 'fim"'. (211 B)


O fim supremo ou perfeição é a união com o Bem ou com Deus. O começo é a visão do processo da criação, de como o mundo vem à existência. Tais visões podem parecer bastante fúteis para as mentes modernas imersas na pesquisa física, para quem as noções cosmológicas da antigüidade, sem exceção, são tidas como sonhos de criança.No entanto, deve ser lembrado que esses místicos acreditavam que a própria substância de seu ser devia ser transmutada ou 'tornada cósmica' e que, consequentemente, ela tinha que passar por estágios de reforma semelhantes aos estados pelos quais eles imaginavam que a matéria do mundo, ou a alma do mundo, havia passado em sua formação ou ato de tornar-se.E que aquilo que estava se passando neles lhes era mostrado em visão, como uma projeção na tela cósmica, como se fora a formação de um mundo.

O interesse deles na cosmogonia era, portanto, pessoal. Conforme suas noções, tinha de haver uma 'formação de acordo com a substância', antes que a 'formação de acordo com a Gnosis' pudesse ocorrer. Por isso, verificamos que, no primeiro tratado do Corpus Hermeticum, no famoso documento Poimandres ou Pastor de Homens, a exigência do iniciante era:"Gostaria de aprender a respeito das coisas existentes e compreender sua natureza [ou seja, a origem e desenvolvimento do mundo] e de conhecer a Deus." (C.H., I. 3)E após ter sido mostrada a visão da ordem do mundo e do processo do mundo, o Iniciador, a Mente Divina, informa ao contemplado: "Foi-te ensinada a natureza do universo, sim, a maior visão" (ibid. 27). Perceber a natureza do mundo, no entanto, não é o fim, mas o começo da senda de perfeição; e é bem natural, pois esta tem a ver com inícios e não com finais.Isto é visto muito claramente na assim chamada liturgia de Mitra, em que o 'corpo perfeito' tem primeiramente que ser 'formado' de elementos puros, antes que os místicos possam ascender à visão.Porém, se falamos de inícios com relação ao processo universal, não devemos nos esquecer que estes são somente inícios para nós e não da própria realidade, que não tem princípio nem fim.


Isto é admiravelmente indicado na tradição de Trismegisto, a seguir: "Pois para o Bem não há outra margem, não há limites, ele não tem fim e, por si mesmo, também não tem princípio, ainda que para nós pareça ter um a Gnosis”. "Portanto, para ele a Gnosis não é o começo, porém ela permite a nós o primeiro princípio a ser conhecido." (C.H., IV. 8,9)A visão da natureza do mundo é geralmente referida simbolicamente como a contemplação do típico imaginário Makroanthropos ou Homem Cósmico, de quem o homem era tido como sendo essencialmente uma imagem.Se tu O vistes através das coisas que passam pela morte, tanto na terra como na profundidade, pensas a respeito de um homem sendo fabricado num útero, meu filho, escrutinizes estritamente a arte Daquele que o fabricou e aprendas quem fabricou esta justa e boa imagem do Homem." (C.H., V. 6)


Esta doutrina do começo e do fim da Gnosis é bem indicada na famosa fórmula do Documento Naasseno cristianizado, citado por Hipólito: "O início da Perfeição é a Gnosis do Homem, porém a Gnosis de Deus é a Perfeição aperfeiçoada."Aperfeiçoamento é um termo técnico para o desenvolvimento na Gnosis, sendo o Gnóstico realizado conhecido como o 'perfeito'. O início, ou a iniciação nesta supra-consciência, era dito como sendo dado numa visão cósmica do Homem Celestial, isto é, não do Supremo como absoluto, mas do Corpo Universal; somente o fim ou consumação era a união com a Deidade.Porém, a visão do que o mundo é somente podia ser desfrutada se o iniciante já se tivesse purificado para ter, dentro dele, como se fora um núcleo de elementos puros para começar ou iniciar a formação de seu novo 'corpo perfeito', como é tão bem descrito na assim chamada liturgia de Mitra. Após isto, segue-se simplesmente o 'reconhecimento de si mesmo como imune à morte' ou imortal, de acordo com a afirmação trismegística: "Aquele que sabe que retornou a Deus".


Neste particular pode ser de interesse citar, do capítulo que conclui o grande trabalho de Hipólito contra os Gnósticos, uma passagem negligenciada que mostra como o Pai da Igreja, apesar de detestar seus ensinamentos gerais, foi fortemente influenciado por esta doutrina central da Gnosis. Em seu "Epílogo", enquanto estabelecia o que chamou de a 'Doutrina da Verdade' contrastada com o que considerava como as 'Doutrinas do Erro', Hipólito escreve: ."E terás teu corpo imortal e livre de toda corrupção juntamente com tua alma ...; te unirás com Deus ... Pois agora te tornastes um deus. E todas as coisas que assistem a Deus, estas Deus prometeu conferir a ti; pois te tornastes deus, nascestes imortal.Isto significa 'Conheça-te a ti mesmo', conhecendo Aquele que te tornou num deus. "Quanto a este corpo imortal ou espiritual, a crença geral de todos os místicos era a de que no corpo humano havia, por assim dizer, a potencialidade de um corpo cósmico, um corpo de totalidade.

Por isso, numa das preces dos mistérios trismegísticos, encontramos a petição: "O tudo em nós, Ó Vida, torne-o íntegro; Ó Luz, ilumine-o; Ó Deus, inspire-o" (C.H., XIII. 19).Esse 'tudo' é o novo corpo imortal, o corpo da ressurreição. Vida, Luz e Deus são a Alma, a Mente e o Espírito Divinos que devem completá-lo na Gnosis. A expansão da Gnosis deve operar uma transformação no ser vivificação, iluminação, inspiração. Deus, como Espírito, transmuta-nos em espírito; como Luz, Ele nos glorifica, irradia-nos para que nos tornemos gloriosos; e, como Vida, confere-nos imortalidade.


A consumação deve ser uma totalidade ou ser eônico de esplendor imortal espiritual. Ainda que seja verdade que exista algo de uma natureza absoluta a respeito desta 'luz da Gnosis', pois ela é essencialmente espiritual e imediata, a Gnosis também é freqüentemente descrita como uma 'senda', uma 'ascensão' gradual. Em suas concepções mais elevadas, no entanto, esta senda não é uma 'jornada celestial' psíquica; ao contrário, é um caminho espiritual imediato que se abre em qualquer aspecto da vida. Não é necessário 'deixar o mundo' para encontrá-lo, exceto no sentido de jogar fora de nós o 'supremo vício' ou 'o maior mal' que, em contraste com a suprema virtude da Gnosis, é chamado de ignorância de Deus, no sentido de uma força positiva de negligência proposital do divino. É uma questão de 'arrependimento', mas no sentido espiritual de um voltar de toda a natureza, isto é, de toda a vontade ser colocada em direção ao Bem."Porém, para ser capaz de conhecer o Bem: desejar, aspirar, é um caminho direto à senda do próprio Bem, levando facilmente até lá.Se tu simplesmente colocares teu pé neste caminho, ele te encontrará em toda parte, será visto em toda parte, onde e quando não o esperares - acordado, dormindo, navegando, viajando, de noite, de dia, falando ou nada dizendo. Pois não há nada que não seja a imagem do Bem." (C. H., XI. 21).


Este caminho de retorno é simbolizado indiferentemente como uma senda, uma viagem, ou a subida de uma montanha. Que a Gnosis era essencialmente religiosa ou espiritual e não intelectual, já foi plenamente estabelecido, mas pode ser confirmado com autoridade pela seguinte declaração categórica com referência à visão do Belo e do Bem: "Só há uma forma que leva a ele: devoção juntamente com Gnosis" (C.H., VI. 5).A entrada na senda da Gnosis é chamada 'voltar para casa'. Como vimos, é um retorno, um virar as costas ao mundo, um arrependimento de toda natureza: "Devemos nos voltar para o velho, velho caminho" (C.H., IV. 9).Ingressar na Gnosis é um despertar do sono e da ignorância de Deus, da embriaguez do mundo para a temperança virtuosa."Pois o mal [ilusão] do não conhecimento está inundando toda a terra e trazendo total ruína à alma aprisionada dentro do corpo, impedindo-a de navegar para os portos da salvação." (C.H., XII. 1)
A única salvação é a Gnosis, Gnosis de Deus, pois: "Deus não ignora o homem; ao contrário, Ele o conhece inteiramente e Sua vontade é que Ele [por Sua vez] seja bem conhecido [pelo homem]. Este é o único meio de segurança para o homem sua Gnosis de seu Deus. Este é o Caminho que leva ao alto da Montanha (Olimpo). E é somente por esta [ascensão] que a alma do homem torna-se boa." (C. H., X. 15)A subida da montanha é a ascensão (anodos, anabasis) da alma à altura da contemplação, ou o seu mergulho em sua natureza espiritual.

É o caminho de subida, bem como do retorno.Observada do ponto de vista humano, a Gnosis é o 'teste da devoção' (C.H., X. 19), a 'virtude da alma' e também o 'fim da ciência' (C.H., X. 9).Diz-se que aquele que 'conhece a si mesmo' é "bom e piedoso e ainda na terra é divino" (C. H., X. 9). No entanto, considerado do ponto de vista soteriológico, ou em relação à teoria da salvação, a senda não surge a partir da própria pessoa, mas pela descida do Salvador, tanto nas formas de Gnosis pré-cristãs como nas formas cristianizadas. Desse modo, na conclusão do bem referido hino Naasseno, baseado em material pagão e oriental, Jesus é descrito como dizendo: "Com brasões em minhas mãos descerei; ao longo de todos os eons do universo eu construirei um caminho; revelarei todos os mistérios e manifestarei as formas que os deuses apresentam.

Aos segredos da sagrada senda darei o nome de Gnosis e os transmitirei."A ascensão para o alto da montanha é mencionada diversas vezes, como o é por quase todo o misticismo e não deve ser atribuída à lenda de Moisés; ela é puramente pagã. Por isso, Juliano diz que Hermes, como guia ou instrutor místico, encontra-se com os místicos na base da montanha, enquanto nos Papiros de Magia (Pap. Lug., V.) lemos: "Sou aquele a quem tu encontrastes no sopé do monte sagrado". E no tratado trismegístico chamado de O Sermão Secreto na Montanha, a senda probatória é chamada a 'subida da montanha' (C. H., XIII. 1), no topo da qual ocorrem a transfiguração e a visão. Nos mesmos sermões iniciáticos, em outra passagem, o neófito é exortado:"Procura um guia para levar-te aos portais da Gnosis, onde brilha a clara luz, isenta de toda escuridão, onde nem uma única alma está embriagada, mas todas estão sóbrias, acordadas de seu sono embriagado, com os olhos do coração fixos Nele que quer ser visto" (C.H., VII. 2).


Isto é descrito de forma ainda mais elegante na passagem: "Porém, no caso da alma piedosa a Mente, na verdade, a eleva e guia para a luz da Gnosis. E esta alma nunca se cansa de cantar louvores a Deus, de verter bênçãos a todos os homens e de fazer o bem em palavras e ações para todos, imitando o seu pai." (C. H., X. 21)Portanto, o conhecimento de Deus é um conhecimento ou 'visão' com os 'olhos do coração'. Tais olhos são chamados 'espirituais', 'abençoados', 'imortais'. Os olhos do corpo não são os órgãos da visão verdadeira, como lamentam as almas quando inicialmente encarceradas no corpo: "Janelas estas são não olhos!" O corpo é o 'véu da ignorância', o 'invólucro da escuridão', o 'envoltório da personalidade', pois: "Nenhum ouvido pode ouvi-lo, nem o olho pode vê-lo, mas só a mente e o coração" (C.H.,VII. 2).


O conhecimento Gnóstico é a intuição da mente verdadeira ou espiritual, a apreensão imediata ou a clara percepção da realidade viva. Ainda que geralmente referido metaforicamente como olhar, visão ou contemplação, porque a vista é o mais aguçado dos sentidos diferenciados, é, preferivelmente, percepção instantânea; na verdade, é chamado o sentido único, o sentido simples, o sentido unitário, o 'sentido da inteligência'. É tato ou contato espiritual, um tornar-se imediato, um estado além do sujeito e objeto, assim como Plotino o descreve, um único sentido sintético, para o qual ele também usa o termo técnico de tato ou toque. "Só a intuição vê o imanifestado, visto que ela mesma é imanifestada. Se és capaz [de percebê-lo], manifestado será aos olhos de tua mente... Ilimitada é a natureza generosa do Senhor; ela se manifesta por todo o mundo. Tu podes conhecê-la, não podes vê-la, tomá-la em tuas próprias mãos e observar a imagem de Deus." (C.H., V. 3)


Aqui a mente ou coração, como foi chamada, é o ser espiritual ou mônada do homem, como para os sufis maometanos e a maioria dos místicos elevados. Não é a denominada mente-cérebro ou mesmo o intelecto raciocinador. Seu conhecimento ou visão é de uma natureza imediata. É a imagem de Deus no homem e é por meio dela que a imagem de Deus no universo ou a Beleza da Vida é contemplada. Este conhecimento é chamado o 'poder da visão divina', que não é ver mas um tornar-se, como pode ser exemplificado num dos Extratos Herméticos preservados por John Stobaeus (Ek. I, XXI).


Aquele que não ignora estas coisas, pode conhecer a Deus no sentido acurado do termo; na verdade, se a pessoa ousar dizer isso, pode vê-Lo tornando-se a própria coisa que vê e vendo torna-se então imortal". A Gnosis, além disso, confere liberdade, soberania, realeza. O reino da Gnosis é, assim, estabelecido em contraste com o reino do destino ou do mundo sensível e, portanto, é concebido como a ordem supra-sensível ou imaterial, o mundo da liberdade espiritual contrastado com o mundo mecânico de causa e efeito.

A Gnosis torna livre. A mente espiritual é livre, pois: "Senhor de todas as coisas é a Mente, a Alma de Deus; sim, Senhor do destino e da lei e de todas as coisas também. Nada é impossível para Ela, nem elevar uma alma humana acima do controle do destino, nem colocar abaixo da influência do destino uma alma que a tenha negligenciado." (C. H., XII. 9)Por isso, Zózimo, o hermetista e alquimista , no final do século III d.C., citando escritos trismegísticos que não mais existem, fala-nos que o Três-vezes-grande Hermes refere-se aos homens naturais, isso é, aos 'psíquicos', como eram chamados, ou aqueles que ainda eram incapazes de contatar conscientemente, em si mesmos, o imaterial ou espiritual, como os 'sem mente' e joguetes, brinquedos ou cortejos do destino. No entanto, aqueles que têm a mente espiritual ativa são chamados de filósofos ou aqueles que amam a sabedoria; eles são superiores ao destino e reis de si mesmos, porque se conhecem da forma Gnóstica. Assim, também em O Sermão Perfeito (XI!.), somos informados de que a Gnosis e a Filosofia são idênticas, no sentido de amor à sabedoria, pois lemos da "filosofia que consiste somente em conhecer a divindade, uma visão amiúde renovada, o culto da santidade".


Algumas pessoas argumentam que a Gnosis era principalmente mágica, sendo seu significado característico essencialmente o conhecimento de fórmulas mágicas; e é verdade que, em algumas das tradições, encontramos, no meio do material, uma riqueza de tais fórmulas, sons místicos, permutações de vogais e combinações (talvez para serem consideradas, às vezes, como uma notação musical esquecida), o detritus antigo e, portanto, sagrado, línguas e o resto.


Mas isso certamente não pode ser dito de um bom número das principais escolas e, muito menos, da tradição trismegística. Realmente, do tratado perdido Sobre o Portal Interior, Zózimo cita Hermes declarando: "O homem espiritual, o homem que conhece a si mesmo, não deve realizar coisa alguma por meio da mágica, nem mesmo se acreditar que a coisa é boa; tampouco deveria forçar o destino, mas aceitar o seu curso natural. Ele deveria seguir adiante, buscando somente o seu próprio ser e, ao alcançar a Gnosis da divindade, deveria obter os 'três' que não têm nome na terra e deixar o destino levar a cabo sua vontade em sua própria argila, isto é, sobre o corpo.

E, se ele compreender isso desta forma e assim organizar sua vida, deverá obter a visão do Filho de Deus, tornando-se todas as coisas por causa das almas santas, para que possa retirar cada alma da região do destino, para o reino em que ela é livre do corpo."Os 'três' ou 'tríada' são presumivelmente Luz, Vida e o Bem, como já vimos anteriormente.O Filho de Deus é a Mente, o Pastor de Homens, o Guia Divino para a Luz, que ilumina a mente de cada alma, assim mantendo-a elevada, ou tornando-a livre do destino. Como alcançar a Gnosis denota a idéia de liberdade e salvação, assim também sugere a noção de poder, de conquista e de controle.

A posse da Gnosis, portanto, confere 'autoridade', um termo intercambiável com 'poder' num sentido Gnóstico. Abundantes evidências adicionais poderiam ser adiantadas, mas já foi dado o suficiente para demonstrar que a idéia fundamental da Gnosis é a transmutação num ser espiritual e isso é fundamentalmente uma idéia religiosa oriental, a antípoda da filosofia em seu significado moderno comum visto como a elaboração de um sistema intelectual. A Gnosis é, portanto, acompanhada de visão e revelação no sentido que as citações anteriores já deveriam ter tornado claro. Além disso, seria fácil demonstrar que estas são também as características gerais da Gnosis nos sistemas cristianizados, mas isso iria demandar um estudo separado.

Basta citar aqui um único pronunciamento de um pequeno fragmento pouco conhecido de um apocalipse Valentiniano preservado por Epifânio (XXXI. 5): "Saudações da Mente que nunca se cansa, para mentes que nada pode faze-las cansar! Agora despertarei em vocês novamente a memória dos mistérios acima dos próprios céus, os mistérios para os quais nenhum nome pode ser dado, os quais nenhuma língua pode expressar - os mistérios que nenhuma soberania ou autoridade, que nenhum sujeito ou natureza mista tem poder para compreender, mas que foram tornados simples para a compreensão da consciência que está acima de toda mudança."As indicações anteriores do significado de Gnosis nas formas mais elevadas do misticismo helenístico podem ser de interesse para um público mais geral do que para o pequeno número dos que já estão inteirados do assunto.


Existe atualmente uma renovação de interesse em assuntos místicos e foram publicados recentemente livros tratando da experiência religiosa desta natureza. Porém, na maior parte das vezes, a investigação é devotada quase que exclusivamente ao misticismo cristão medieval e mais recente. A riqueza da literatura mística oriental é praticamente ignorada, enquanto sobre as tradições ocidentais fora da Igreja, além de uma referência ou outra a Plotino, praticamente não ouvimos nada dos muitos movimentos místicos dos tempos antigos, que são, pelo menos alguns deles, de grande interesse e importância.



George Mead Robert Stowe (1863 - 1933) foi um autor, editor, tradutor, e um influente membro da Sociedade Theosophica, um Gnóstico na acepção do termo. ( Na foto G.R.S.Mead e Madame Helena Petrovna Blavatsky)

terça-feira, 13 de maio de 2008

Casamento Alquímico

O homem de hoje não ultrapassou o estado autoconsciente. Sem duvida ele fez progresso no que se relaciona a civilização e ao intelecto; todavia, esse progresso diz respeito apenas ao homem exterior, a forma exterior de expressão em conformidade com as opiniões de outros homens. 0 EU interior, isto é, o EU mais refinado do homem tem evoluído pouco nos últimos séculos; na verdade, o homem tem permanecido quase que estacionário, tendo perdido contato com o EU interior na insensata arremetida para acompanhar as desenfreadas condições e necessidades da vida.

As atividades e ocupações do homem convencional ocupam toda sua atenção ate que seu corpo fatigado, rebelando-se contra o esforço que dele e exigido consome-se no trabalho e recusa prosseguir. Que sabe afinal, esse homem a respeito da vida? Onde ficam seus prazeres? Onde esta sua felicidade na louca investida em busca do dinheiro, da fama, da condição social, do orgulho, quanto a sua personalidade, cargo e competição no mundo dos negócios? Pode esse homem levar sua angustias, seus problemas e dificuldades pessoais a um colega ou a sua companheira? Pode ele encontrar solidariedade? Se perder tudo, ele tem para quem se voltar em busca de auxilio e de um recomeço? Revelam-se no mundo material o coração e a alma dos homens? E o amor expressado para com os outros? Pode o amor verdadeiro ser encontrado nesse mundo excessivamente materialista? Pode alguém que esta totalmente absorvido em sua própria esfera de ação na vida preocupar-se com o que esta fora dela?

Não. O homem convencional deixa este mundo tão carente da verdade a respeito da vida como quando nela entrou.

A evolução consciente somente começa quando a pessoa deixa de permitir que o EU exterior a domine, e rejeite o excessivo apego pelas coisas que contribuem para aumentar a vaidade, o orgulho e o egoísmo das honras mundanas e a concepção de sermos unidades isoladas ou individuais. É fácil verificarmos que aqueles que são atenciosos para com os outros, que fazem tudo ao seu alcance para levar seu semelhante a um plano mais elevado de compreensão e existência são poucos e raros de encontrar. A razão é óbvia. Eles são muitos reservados, fazem o seu trabalho e servem a outros sem deixar que a sua mao direita saiba o que a esquerda esta fazendo, jamais se lançando a evidencia para que todo 0 mundo tome conhecimento de seus atos de caridade porque isto os confundiria. Não buscam elogios e recompensas mas, antes procuram descobrir 0 bem que possam fazer a toda a hurnanidade. E muito melhor realizarmos o nosso trabalho na obscuridade, do que de maneira ostensiva; temos sempre a possibilidade de pensar antes de falar, e de raciocinar antes de agir.
Casamento:
Duas partes complementares, separadas da unidade, trilham um conhecimento subconsciente do relacionamento anterior e procuram restabelecer a união. Aprendemos dai que fundamental e unicamente do ponto de vista metafísico e alquímico, existe uma outra e verdadeira metade complementar para cada ser vivo. Esta noção, entendida de maneira generalizada e errônea, levou a crença popular na existência de urna afinidade para cada ser humano, bem como uma afinidade química para cada um dos elementos naturais.

Se encararmos o casamento como a união por uma lei ou principio alquímico natural de duas partes separadas, mas simpáticas e complementares de uma unidade pré-determinada, podemos concluir por tais condições que o matrimônio e o estado ideal. Na verdade, e o único estado em que dois seres encontram o grau de manifestação perfeita decretada por Deus e pela natureza.

Estes são os princípios, mas diferentemente das manifestações que ocorrem naturalmente no mundo químico ou elemental, entre os humanos existem interferências causada pela insistência intencional do homem em suplantar a mente Cósmica ou espiritual com sua própria mente.
No casamento entre dois seres complementares ele não hesita em exercer sua vontade, seu arbítrio, a um grau que seria considerado sacrílego para o alquimista. O homem desenvolveu a idéia de que e capaz de interpretar as varias emoções de seu ser e decidir quais as atrações naturais, alquímicas, puras e quais são atrações passageiras...

Ele interpreta as ilusões, impressões e emoções transitórias como sendo o grito cósmico, permanente, apropriado, de um ser separado a chamar sua contraparte. Os químicos sabem que os elementos da natureza que não estão unidos a suas partes complementares não podem ser forçados a uma combinação não natural, não simpática ou não harmônica com outros elementos.

Os biólogos sabem que a união de dois elementos não harmônicos e não simpáticos ira manifestar um produto desarmônico, sub-normal ou anormal muito distanciado da criação perfeita representada pela terceira ponta do triângulo.

Infelizmente, este fato, conhecido dos químicos e biólogos, e tão perfeitamente compreendido pelos místicos, não e aceito nem levado em consideração pelo homem e pela mulher comum. Fala-se levianamente que os casamentos são feitos no céu, o que perfeitamente correto do ponto de vista alquímico. Do ponto de vista do biólogo e do químico e um principio bem fundamentado. Mas não se aplica no caso de pessoas unidas por uma decisão arbitrária e pela obstinada e ignorante má aplicação da lei natural. 0 verdadeiro matrimonio entre dois seres humanos só pode resultar de um estudo cuidadoso de suas características e elementos naturais.

Para um verdadeiro casamento alquímico, e portanto uma união Cósmica natural, a essência divina de cada um deve se unir a do outro por atração natural, antes que seus corpos possam se unir adequadamente. Nas antigas cerimônias místicas, o rito matrimonial físico jamais era realizado enquanto as dois "Eus" interiores não tiverem encontrado a perfeita união, a sublime harmonização. A Cerimônia do casamento físico era realizada com o único fim de obedecer costumes éticos, legais ou religiosos da terra, e era considerada apenas uma formula a ser completada após a união natural espiritual.

Com a passar do tempo, a cerimônia espiritual, o processo alquímico do matrimônio, passou a ser ignorado. Fórmulas criadas pelo homem aumentaram a ponto de leva-lo a acreditar que ele não só decretava ser o casamento físico apropriado, completo e de acordo com a lei natural, mas também, de alguma forma, forçava a natureza a sancionar e sintetizar o casamento espiritual que deveria ter ocorrido anteriormente. Em alguns casos, tais matrimônios são perfeitos pelo casamento natural da essência da alma ter ocorrido muito antes do casamento físico.

Nestes casos, o casamento físico e apenas o resultado de algo experimentado interiormente e de forma divina.

Na maioria das vezes, entretanto, o casamento físico ocorre sem que antes ocorra a União das ALMAS, o casamento no sentido espiritual ou alquímico e impossível, pela falta de harmonização entre duas pessoas unidas desta forma.

Em tais uniões, não há uma fusão de duas naturezas simpáticas, não há atração alquímica ou Cósmica, apenas uma atração química, física e transitória. As coisas mortais modificam-se constantemente, e mais cedo ou mais tarde os cônjuges percebem que não estão adequadamente combinados, mesmo nas minúsculas formas do mundo material químico, os elementos erroneamente unidos sempre vibram de forma desarmônica e acabam por desfazer a união.
Não e de surpreender, portanto, que homens e mulheres unidos de maneira incorreta procurem livrar-se, não só exteriormente, mas também através de sua essência da alma e natureza divina, das estreitas limitações a que foram forçados. A separação, o divórcio será inevitável enquanto o homem arbitrariamente dirigir a união da sua natureza com outra.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Mestre Jesus, o Cristo e Buda


Mestre Jesus e Buda - Em que eles concordam? Em que eles divergem?
As grandes tradições espirituais de nosso planeta sempre ensinaram que o mundo em que vivemos é uma ilusão, é maya como dizem os hinduístas. Com mais razão ainda, poderíamos dizer que as aparentes diferenças que saltam aos olhos entre o budismo e o cristianismo são também uma ilusão.

Na verdade, estas duas grandes tradições do oriente e do ocidente têm muito mais em comum do que suas aparentes diferenças sugerem. Quando estudamos mais a fundo estas tradições verificamos que por trás de suas nomenclaturas díspares e enfoques radicalmente opostos existem mais convergências e semelhanças do que contradições. O primeiro passo, porém, em todo estudo comparativo é deixarmos bem claro o que estamos comparando. Assim, que vertentes, ou escolas destas duas tradições estamos comparando? De um lado o Budismo Mahayana, também conhecido como o Grande Veículo.

Da mesma forma que Jesus transmitiu vários níveis de ensinamentos para diferentes grupos de pessoas, assim também o fez o senhor Buda.

Estaremos comparando o Budismo Mahayana com o Cristianismo Primitivo ou Gnosticismo, que foi a continuação natural do Ministério de Jesus.

O Cristianismo Primitivo recebeu um grande baque, no início do século quatro, com a transformação do cristianismo em religião oficial do Império Romano. A partir de então os objetivos temporais suplantaram os espirituais e o ensinamento original de Jesus foi perdendo sua importância relativa à medida em que a hierarquia clerical dominante foi tomando mais força do que a assembléia dos praticantes, a verdadeira igreja.

A nova Igreja passou a enfatizar dogmas, credos e rituais externos, estabelecidos com o propósito de consolidar seus objetivos temporais, criando com isto toda uma série de distorções na doutrina e prática legadas por Jesus. O budismo, por sua vez, também não escapou incólume das influências do clero e de outros fatores externos.

Com as distorções separativistas e materializantes introduzidas ao longo dos séculos na religião budista e mais ainda na cristã, uma comparação entre as versões populares destas duas religiões atuais indicaria mais diferenças do que semelhanças. Lembramos, também que, para a Igreja, o cristianismo não pode ser comparado com o budismo ou qualquer outra religião, porque o cristianismo seria o resultado de uma revelação divina, a única revelação fiel e verdadeira. Portanto, sendo a única religião verdadeira não poderia ser comparada com qualquer outra.

DEUS E O VAZIO
Procuremos ter sempre em mente que estaremos comparando o Cristianismo Primitivo com o Budismo Mahayana. Vejamos os métodos e premissas dessas duas tradições, para que possamos levar adiante essa comparação. O cristianismo é uma religião teísta, ou seja, que se baseia na existência de um Deus. A Deidade é considerada como a criadora de todos os mundos. Por esta razão, o método utilizado no cristianismo, como em todas as religiões teístas, é um método dedutivo. Todas as concepções originam-se necessariamente da Fonte Una e todas as deduções são feitas de cima para baixo, até alcançar o mundo físico e a humanidade.

O budismo, ao contrário, é uma religião não-teísta . Neste ponto poderíamos nos perguntar: mas como o budismo pode ser uma religião se não admite a existência de Deus, já que a palavra religião origina-se do termo latino "religare", que significa ligar o homem de volta à sua Fonte? A questão é complexa e procuraremos abordá-la sob diferentes ângulos nesta apresentação.

Podemos adiantar, porém, que o senhor Buda, com sua imensa sabedoria, teve boas razões para estabelecer toda sua doutrina com um enfoque inteiramente diferente das religiões tradicionais. Em vez de iniciar seu sistema com uma concepção filosófica sobre a origem de toda a manifestação, ou seja, Deus, o senhor Buda usou como premissa básica a observação da realidade da vida dos homens, ou seja, a existência do sofrimento. Com base nessa constatação ele estabeleceu seus ensinamentos, indutivamente, de baixo para cima.

Poderíamos nos perguntar também: se essas duas tradições são convergentes, como se explica que o objetivo último das práticas budistas é alcançar o vazio enquanto do cristianismo primitivo e do gnosticismo, era de alcançar a plenitude. Aparentemente são pólos opostos: vazio x plenitude. Vejamos porém, o que está por trás destas palavras. O budismo prega que as práticas meditativas permitem uma progressiva purificação e controle da mente, até o ponto em que o praticante alcançará a realidade última, que é a contemplação ou vivência do vazio. Se nos deixarmos levar pelo sentido literal das palavras, o vazio é a ausência de tudo. Num certo sentido, este é o significado do vazio. Os budistas explicam, porém, que vazio é a ausência de realidade inerente das coisas. Isto significa que nenhum ser ou objeto tem uma existência inerente por si só. Se nada tem existência inerente por si só, a conclusão é que a existência de qualquer ser ou objeto depende do inter-relacionamento de todas as coisas.

Os gnósticos, ou cristãos primitivos diziam, por sua vez, que o objetivo último de toda prática religiosa é alcançar a plenitude. 'Pleroma', ou plenitude é o estado de consciência da totalidade, em que o gnóstico percebe que ele é uno com todos os seres, que faz parte da plenitude do todo. Portanto, a plenitude do todo e o vazio da existência inerente das unidades separadas, nos permite entender que estamos falando da mesma coisa com linguagens diferentes. As duas tradições enfocam a realidade última a partir de pólos opostos. Por trás da terminologia aparentemente contraditória as duas tradições concordam que, em sua essência, o vazio é plenitude.

Uma vez esclarecido o paradoxo, podemos entender porque um grande místico cristão do século passado, Thomas Merton, sugeriu que nenhum homem é uma ilha. Ele valia-se da imagem de que a ilha é um pedaço de terra isolado. Portanto, nenhum homem é isolado em si mesmo. Todo homem faz parte do continente. E qual é a imagem do continente? No continente todos os pedaços de terra se encontram ligados e são interdependentes. Então, no continente existe a totalidade. Explica-se dessa maneira porque vazio e plenitude são, em sua natureza última, a mesma coisa.

CRISTO, KRISHNA E BUDA

Vários estudos comparativos foram feitos sobre as vidas de Gauthama e de Jesus (bem como a de Krishna e de outros). Um fato recorrente nestes estudos são os paralelos encontrados nas vidas destes salvadores da humanidade. Quando observamos atentamente esses paralelos, não podemos deixar de concluir que as inúmeras coincidências verificadas não podem ser obra do acaso. Por exemplo, na obra Isis sem Véu de H.P. Blavatsky, é dito que Gautama é filho de um rei e Jesus descende da família real de Davi. Gauthama, é uma encarnação de Vishnu e Jesus, uma encarnação do Espírito Santo. Portanto, os dois são expressões do Divino. Tanto a mãe de Gauthama, Maya, como a de Jesus, Maria, conceberam de maneira especial. Até mesmo os nomes: Maya e Maria, parecem indicar uma raiz comum que remonta a um passado tão distante que o registro humano não consegue alcançar.

Alguns estudiosos, após investigarem as mais diversas tradições religiosas registradas, verificaram que existem pelo menos dezesseis tradições em que o seu salvador morre crucificado. E nessas dezesseis tradições existem quase todos os paralelos que estamos apresentando aqui. Essa é uma clara indicação de que os paralelos entre as vidas de Jesus, de Gautama e de outros salvadores da humanidade não são coincidências únicas na história.

Ao contrário, todas as grandes tradições religiosas oferecem, por meio histórias estilizadas da vida de seu fundador, marcos simbólicos indicativos da Senda espiritual que deve ser trilhada pelos discípulos avançados para que possam tornar-se, eles também, salvadores da humanidade.

Tanto Gautama como Jesus eram dotados do poder de realizar prodígios e efetuar curas milagrosas. A Igreja, mais tarde, durante o período mais negro de sua história na Idade Média, verificando que essas semelhanças não podiam ser negadas, deu mais uma prova de sua miopia e arrogância explicando que as semelhanças eram obra do diabo. O argumento apresentado foi que o diabo, sendo um poderoso arcanjo, tinha visto o que iria acontecer com Jesus mais tarde, e então, para confundir os fiéis, copiou com antecedência todos esses registros históricos de fenômenos excepcionais na vida destes grandes seres.

Explicações diabólicas à parte, o fato, porém, é que existem inúmeros paralelos na vida destes dois grandes seres.

RASGANDO OS VÉUS DOS TEMPLOS

Gautama abole a idolatria e entra em conflito com os brâmanes que detinham o monopólio do ensinamento religioso da tradição hinduísta. Ele divulga os mistérios da unidade e do nirvana, e oferece um método prático e seguro, ao alcance de todas as castas, para se alcançar a libertação.

Jesus revela-se contrário à tirania religiosa dos escribas, fariseus e da sinagoga, e revela os mistérios do reino de Deus. As convergências são cada vez mais gritantes. E, finalmente, após a morte, Buda sobe ao Nirvana e Jesus é elevado ao Céu.

Vejamos agora, sob outro prisma, os diferentes níveis de ensinamento. As duas tradições reconhecem três níveis de realização. No nível mais elevado estão aqueles que eram chamados eleitos, ainda que sem um sentido elitista de exclusão. Entre os gnósticos, eles eram conhecidos como pneumáticos, que significa espirituais e, entre os budistas, como árias, ou sejam, os seres sagrados, os seres elevados ou avançados.
O grupo seguinte, os intermediários, eram conhecidos entre os gnósticos como os psíquicos ou religiosos e entre os budistas como os aniatas. E, finalmente, o grupo dos homens comuns, os muitos, na linguagem de Jesus, eram chamados pelos gnósticos, de ílicos ou materiais, e entre os budistas, as pessoas tolas, denominação apropriada, pois aqueles que só estão voltados para os prazeres da vida material imediata, sem nenhum interesse pelo objetivo último da vida, são, certamente, pessoas tolas.

Assim, o ensinamento dos grandes mestres foi estruturado para atender as necessidades desses três grupos de pessoas. Para o povo em geral, para aqueles que estão voltados exclusivamente para a vida neste mundo, a ênfase eram os ensinamentos sobre a ética e a vida diária.

Para os homens intermediários, que os gnósticos chamavam de religiosos, eram ensinamentos mais abrangentes sobre a vida e a prática espiritual, sendo esses ensinamentos encontrados nos sutras budistas e nas escrituras cristãs. E é interessante lembrar que esse grupo intermediário, tanto para os budistas como para os cristãos primitivos, eram aqueles que nesta vida, em função de suas decisões, determinações e postura de vida poderiam cair no grupo dos muitos, os materialistas, ou então, elevarem-se e entrar no grupo dos eleitos, daqueles que poderiam vir a ser salvos ou libertos.

E, finalmente, para o grupo dos assim chamados espirituais, os poucos, as duas tradições oferecem ensinamentos sobre o caminho acelerado. O caminho acelerado, com suas naturais exigências de purificação e dedicação, só está aberto a muito poucos. Por exemplo, nos mosteiros budistas, dentre os monges que terminam seu período de formação, cuja extensão depende da escola, são muito poucos aqueles que são convidados a seguir adiante com os estudos e práticas, agora não mais dos sutras, mas dos tantras, no caminho acelerado budista. E, no caso dos gnósticos, as práticas avançadas incluíam os sacramentos. Esses sacramentos originais ministrados por Jesus e mais tarde por seus discípulos eram cinco e não os sete sacramentos atuais da Igreja. Os sacramentos originais eram realmente transformadores, pois equivaliam a iniciações.

ÉTICAS CRISTÃ E BUDISTA
Vejamos agora os ensinamentos voltados para o homem comum nas duas tradições. Eles tratavam principalmente de questões relacionadas com a ética. Aqui também vemos grandes convergências, grandes paralelos entre as duas tradições. É interessante notar que a maior parte dos ensinamentos de Jesus sobre a ética, foram coletados na parte do Evangelho que veio a ser chamada de Sermão da Montanha. É possível e até mesmo provável que aqueles ensinamentos tenham sido ministrados em diferentes ocasiões sendo mais tarde apresentados de forma orgânica naquele maravilhoso texto. Um fato curioso é que alguns estudiosos, tendo levado a Bíblia para uma comunidade budista, resolveram testar os mestres dessa comunidade. Leram, então, o Sermão da Montanha, sem dizer a fonte, indicando somente que era o ensinamento de um grande mestre. Os monges budistas, após ouvirem com atenção os três capítulos de Mateus (5, 6 e 7) que compõem a versão mais extensa do Sermão da Montanha, concluíram que o autor era um mestre budista, desconhecido deles, mas certamente um budista. Existe, portanto, uma total afinidade dos budistas para com a ética como foi apresentada no Sermão da Montanha.

Entre os budistas, os ensinamentos sobre ética encontram-se em diferentes escrituras, mas talvez no Dhamapada encontra-se a coletânea mais sintética desses ensinamentos.
A questão da ética, sendo básica para todas as religiões, é uma das que oferece um dos maiores escopos para explorarmos os paralelos entre as duas tradições. Só este tema seria suficiente para um artigo ou mesmo um livro, sem contudo esgotar o assunto. Existem quatro passagens do Sermão da Montanha que tratam de homicídio, adultério, falso testemunho e retribuição. Essas passagens correspondem aos preceitos do Buda de não matar, não se apropriar do que não lhe pertença, não ter relações sexuais indevidas, não dizer mentiras e não usar álcool ou drogas.

Como parte de seus ensinamentos sobre a ética, tanto Buda como Jesus, alertaram para o fato de que viriam outros mensageiros com falsos ensinamentos. Por isso, Jesus disse: "Guardai-vos dos falsos profetas que vêm a vós vestidos como ovelhas, mas que por dentro são lobos vorazes." Existem, portanto, aqueles, na tradição cristã que se dizem mestres, instrutores ou gurus. Mas, quando examinamos com atenção suas ações, vemos que são pessoas egoístas, voltadas para si, fazendo um grande esforço para arrebanhar um grupo de seguidores que venha bancar suas pretensões. Esses são os falsos profetas.

Buda também fez uma alusão, não aos falsos profetas mas aos falsos ascetas. Aqueles que se entregam a práticas ascéticas para purificação, mas que, na verdade, estão movidos pelo orgulho de se apresentar como mais desprendido e mais santo que os outros. Esses dizem em seu íntimo: "não só sou um renunciante mas sou mais renunciante que os outros." Obviamente esta é uma atitude de orgulho que não reflete o verdadeiro sentido da espiritualidade. E Buda, com sua linguagem incisiva diz: "Por que esse cabelo trançado?" Porque eles trançavam de tal maneira a causar dor ao couro cabeludo. Por que essa roupa de pele de animal?" Com isso o Senhor Buda procurava nos alertar que não é preciso sinais exteriores de ascetismo porque todo o ascetismo é voltado para a purificação. E a purificação que conta não é a purificação do corpo. É a purificação da mente.

Os ensinamentos sobre a ética são dirigidos a todas as pessoas. Ambas tradições dão muita atenção ao amor e à compaixão, ensinando que a compaixão é a pedra fundamental para a vida superior. Apesar desses ensinamentos serem mencionados nos textos básicos das duas tradições, sabemos que a verdadeira compaixão é um ideal elevado que normalmente só é alcançado por discípulos mais avançados.

São realmente esses discípulos, aqueles que se voltaram inteiramente para a vida espiritual, que têm sua vida e conduta caracterizadas pelo amor puro. Num patamar ainda mais elevado estão os grandes Mestres, como Gautama e Jesus. Ambos foram impelidos a estabelecer seus ministérios redentores pela Divina Compaixão. Renunciaram a tudo e devotaram sua vida totalmente a ajudar a combalida família humana.

Vale lembrar que agiram com divina sabedoria para alcançar os objetivos da divina compaixão. Estando em perfeita sintonia com o Plano Divino procuraram ensinar os homens a tornarem-se responsáveis por si mesmos. Como o fundamento da vida humana é o livre arbítrio, a salvação não pode ser forçada aos homens. Ela só pode ser indicada. Cada ser humano terá que trilhar cada passo, de livre e espontânea vontade, a longa Senda que leva à libertação. A grande contribuição de nossos salvadores foi a revelação do Caminho, por meio de ensinamentos e de seu exemplo. Portanto, a missão dos grandes Mestres, os Salvadores da humanidade, é colocar à nossa disposição os instrumentos para nossa libertação, na forma de ensinamentos capazes de promover nossa progressiva transformação interior. Com o tempo, essa transformação, equivalente à purificação de nossos veículos inferiores, cria as condições necessárias para alcançarmos finalmente a iluminação, ou seja, o portal para a libertação ou salvação.

AMOR E COMPAIXÃO
Vale a pena lembrar que, para os budistas da tradição mahayana, o voto de bodhichitta constitui o ponto de partida de sua tradição. Esse voto nem sempre é bem entendido pelos não-budistas. Fundamenta-se na compaixão, ou seja, na profunda convicção de que todos os membros da família humana são prisioneiros deste mundo.

Encontramos também na Bíblia indicações de que Jesus era movido pela mesma motivação compassiva. Talvez esta motivação esteja refletida mais claramente na passagem ao final de seu ministério ao retornar dos mortos para terminar a preparação de seus discípulos. Nos últimos momentos de sua vida na Terra, antes de ascender ao Céu, Jesus demonstrou a mesma atitude de compaixão dos lamas budistas avançados, numa expressão equivalente ao voto de bodhichitta dizendo, "Eis que estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos!" Com isto Jesus estava prometendo que, apesar de ter sido alçado a um plano diametralmente oposto das vibrações pesadas da Terra, não iria se afastar da família humana com todas suas misérias e sofrimentos, até que todos tivessem sido salvos, que é o significado da expressão "até a consumação dos séculos, ou até o fim dos tempos", como é apresentada em outras versões da Bíblia.

Vejamos agora paralelos entre gnosis e sabedoria. As duas tradições insistem que a salvação só ocorre através da gnosis, como era chamada entre os gnósticos, ou da sabedoria, jnana como é referida pelos budistas. O primeiro passo nessa comparação deve ser o entendimento dos conceitos expressos nas duas tradições. Gnosis é uma palavra grega que significa conhecimento. Isto não significa que decorando uma enciclopédia, ou mesmo todos os livros de uma biblioteca, estaríamos adquirindo o "conhecimento" libertador.

A gnosis tão desejada pelos cristãos primitivos era um conhecimento interior. Não um conhecimento intelectivo dependente da mente concreta e da memória, mas sim de condições muito especiais, tais como a meditação profunda ou mesmo certos rituais que propiciavam a expansão de consciência e a apreensão direta da verdade. Em suma, a gnosis poderia ser considerada como uma revelação interior. Quando Jesus dizia: "Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" Ele estava certamente referindo-se à gnosis.

A VERDADE E A LIBERTAÇÃO
Mas que verdade ou conhecimento é este? Os místicos e sábios de todas as tradições são unânimes em afirmar que a verdade salvadora é o conhecimento interior, ou melhor dito, a vivência interior, de que o homem e Deus são um e o mesmo Ser. A unidade da vida, uma vez experimentada no interior da alma e fixada na consciência do homem, produz uma transformação radical no ser humano. A partir de então ele "sabe" por experiência própria que é imortal e, percebendo a si mesmo como um aspecto inalienável da grandeza infinita de Deus sabe, conseqüentemente, que está salvo.

A essência dos argumentos acima são válidos também para os budistas. O papel central da sabedoria nos ensinamentos de Buda está particularmente explicitado nas paramitas, ou virtudes. Das seis virtudes a última é Jnâna, traduzida normalmente como sabedoria, mas que também significa gnosis, o conhecimento interior. A sabedoria, de acordo com os budista, não é erudição. Não significa conhecer todas as escrituras budistas e poder declamá-las de cor. Sabemos que na época do senhor Buda eram poucos os que sabiam ler e escrever. E eram pouquíssimos os documentos existentes com as escrituras. Então os discípulos, muitas vezes referidos como ouvintes, aprendiam os ensinamentos ouvindo e guardando-os na memória. Este processo de aprendizado era facilitado pelo fato de não terem a mente atulhada de lixo, como temos em nossa civilização atual, bombardeada com todo tipo de informação da televisão, jornais, revistas e agora da internet. Os discípulos de então ouviam os ensinamentos e os gravavam na mente. Eles carregavam sua biblioteca na cabeça.

Apesar dos budistas prezarem o conhecimento de suas escrituras, deixam claro que esta erudição não é sabedoria, mas sim um instrumento facilitador para alcançá-la. A sabedoria, a última das virtudes é a percepção do vazio de todas as coisas, a natureza essencial da mente, o substrato de toda a manifestação. Porém, como vimos anteriormente, o vazio ou ausência da natureza inerente equivale à unidade de todas as coisas. Portanto, a sabedoria para os budistas é o mesmo que gnosis para os cristãos primitivos.

Outro ponto de convergência das duas tradições é a importância da "Lei". O Dharma, ou lei é a fundamentação do budismo. Eles são conhecidos como os praticantes da lei. Mas o que é a lei para os budistas? E o que é esta grande Lei? É a Lei Divina. É a Lei que rege toda a manifestação. Em virtude do princípio hermético das correspondências (aquilo que está em cima é como aquilo que está embaixo, o que está dentro é semelhante ao que está fora, o pequeno é semelhante ao grande), a grande Lei Universal está refletida na lei que é transmitida aos seres humanos em suas escrituras sagradas, na tradição judaico-cristã a Torá e na tradição budista o Dharma.

A LEI E A PURIFICAÇÃO
Encontramos na tradição cristã primitiva a passagem em Excertos de Teódoto: "Somente o batismo não liberta mas sim, a gnosis, o conhecimento interior de quem somos, o que nos tornamos, onde estamos, para onde vamos. O que é nascimento, o que é renascimento". Outra passagem bastante conhecida, desta vez da Bíblia, reflete também a tradição gnóstica: "Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará". Conhecimento ou gnosis, portanto, é o portal da liberdade.

É dito no budismo que para se alcançar a sabedoria, a jnâna, torna-se necessário a purificação da mente de seus fatores mentais obscurecedores. Os budistas ensinam que para se alcançar a sabedoria ou o vazio, que é a pura percepção da clara luz da mente, temos que retirar primeiramente tudo aquilo que obscurece a mente. O entulho mental é em grande parte conseqüência de nossos condicionamentos na vida terrena, chamados pelos budistas de skhandas. Existe na literatura budista um grande número de referências sobre a purificação da mente. Estes ensinamentos foram, mas tarde codificados e aprofundados pelo grande mestre budista Asangha, que viveu no século IV de nossa era. A questão do conhecimento e da purificação da mente é tão importante para os budistas que eles desenvolveram uma linha de estudos que chamam de lojong para tratar exclusivamente do treinamento da mente.

Na literatura cristã, ainda que sua natureza seja inteiramente diferente da budista, algumas referências são feitas ao treinamento da mente, principalmente nas epístolas de Paulo. Porém, a verdadeira importância da purificação da mente para o cristianismo primitivo ficou mascarada pela tradução errônea do termo grego "metanoia" no original grego da Bíblia como "arrependimento". Por exemplo, numa das primeiras passagens dos evangelhos, João Batista é apresentado pregando: "Arrependei-vos, é chegado o tempo". Porém, no original em grego, a expressão era derivada de metanóia que tem um significado muito mais amplo do que arrependimento. Significa: modificar os conteúdos mentais para que se possa perceber a verdade; proceder a uma transformação da mente, uma transformação interior. Esse é o verdadeiro sentido de metanóia que foi traduzido na Bíblia como arrependimento.

Como conseqüência dessa distorção bíblica, o cristão ortodoxo tradicional desenvolveu uma atitude de passividade face à vida espiritual, eu preciso me arrepender de meus pecados. Mais tarde os teólogos reforçaram esta atitude com a instituição do sacramento da penitência, melhor conhecido como confissão, que previa o perdão dos pecados para aqueles que os confessassem aos prelados da Igreja. É bem verdade que nem todas as correntes do cristianismo aceitaram a instituição da confissão. Mas a corrente dominante venceu e com isto, na opinião de alguns observadores, criou-se um incentivo à hipocrisia, pois o fiel sabia que depois de pecar bastava correr para a Igreja, confessar-se e assim ter assegurada a sua 'pureza'.

Podemos estar certos que este não era o objetivo de nosso sábio e compassivo Mestre. O que Jesus pregava, e que constituía o cerne dos ensinamentos do cristianismo primitivo, é a modificação interior. É somente quando nós nos transformamos interiormente que podemos alcançar aquele estado de plenitude que é o estado da salvação. Felizmente, foi preservada na Bíblia uma frase lapidar do grande apóstolo Paulo, que parece uma citação de um tratado budista: "E não vos conformeis com esse mundo, mas transformai-vos renovando a vossa mente". Renovar a mente. É isto que Paulo e Jesus nos ensinaram.

VIDA E MORTE

Outro ponto de aparente desencontro, mas de convergência em sua essência, é a questão da vida e da morte nas duas tradições. É necessário viver ou morrer para alcançar a meta, o céu ou nirvana? Para os cristãos ortodoxos de diferentes denominações, o conceito dominante é que só podemos alcançar o céu depois da morte. Por isso muitos padres e pastores gostam de contar uma historia que em suas linhas gerais seria: um ministro de Deus estava pregando na igreja, ou no templo, e aí voltou-se para sua congregação:

"Nós todos amamos Jesus, não amamos? - Amamos! Responderam em uníssono.- Então, quem quer ir para o céu?- Eu! Eu! Todos levantaram a mão.- E quem é que quer ir para o céu, agora? "
Constrangimento total.
Só duas velhinha muito doentes levantaram a mão timidamente. Por que essa incongruência entre ideal e prática? A razão dos fieis preferirem sempre postergar para o último momento a suposta ida ao céu deve-se à imagem errônea de que o céu é um lugar que só está ao alcance dos mortos. Obviamente esta é uma concepção totalmente errônea porque o céu não é um lugar. O céu é um estado de consciência. É o estado de consciência da unidade com a fonte da vida e com todas as outras expressões desta vida. Este estado de consciência já foi atingido por milhares de místicos e iogues de diferentes tradições ao longo dos séculos. Apesar de existirem diferentes níveis para este estado de transcendência, todos eles podem ser alcançados durante a vida terrena. Os gnósticos e os cristãos primitivos, conhecendo os 'mistérios do reino', estavam cientes de que a "salvação" era alcançada neste mundo, sendo nossas conquistas obtidas enquanto no corpo físico estendidas para os estados fora do corpo.

Os budistas, porém, sempre souberam que viver num corpo físico é indispensável para se alcançar a iluminação. O corpo deve ser considerado como um veículo a ser usado para nossa jornada rumo ao Nirvana e, portanto, deve ser devidamente cuidado. Para isto o Buda recomendou a ascese, ou seja, práticas espirituais visando a purificação. Só que, não com aquele extremo rigor de virtual tortura do corpo que os antigos ascetas da tradição hindu faziam. Chegavam até enfiar pregos na mão e em outras partes do corpo, dormir como os faquires em camas de pregos e outras práticas chocantes para nossa cultura ocidental.

O Buda disse que nada disso é necessário, sendo mesmo contraproducente. Devemos cuidar do corpo com esmero e atenção mas sem ir para o outro extremo. Daí Buda falar no caminho do meio. Nem a licenciosidade de uma vida de prazeres mundanos, nem tampouco um ascetismo exacerbado que prejudica o corpo. Devemos tratar o corpo como se ele fosse nosso animal de serviço. Devemos alimentá-lo bem mas não a ponto dele ficar muito gordo e não poder trabalhar direito. Por outro lado não podemos deixar de alimentá-lo o suficiente a ponto de emagrecer e não ter mais força para trabalhar. Então a alimentação e todo o cuidado do corpo deve ser efetuado com o objetivo de prestar serviço para o verdadeiro senhor do corpo que é a alma, ou o continuum mental na concepção budista.

Parte da atitude de medo e rejeição da morte entre os cristãos deve-se ao mal entendimento de algumas passagens da Bíblia, como por exemplo: "Quem ama a sua vida a perde. E quem odeia a sua vida nesse mundo, guarda-la-á para a vida eterna". "Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só. Mas se morrer produzirá muito fruto". Numa primeira leitura, uma leitura literal que não nos leva muito longe no entendimento da mensagem bíblica, poderíamos pensar, "não gosto disto; está dizendo que temos que morrer, temos que cair na terra e morrer para dar fruto". Mas esta não é em absoluto a mensagem que o Salvador nos legou. A renúncia é que está sendo expressa através dessas passagens. Devemos renunciar ao mundo e não continuar a viver como se este mundo e seu prazeres fossem o objetivo último de nossa vida.

JESUS, BUDA E OS DOGMAS
Outra área de semelhanças entre as duas tradições é a organização e atuação das Ordens Monásticas. Os monges budistas e os discípulos de Jesus foram instruídos para atuar como pregadores itinerantes, mendicantes, vivendo para servir os outros, aceitando o que lhes era oferecido. Jesus inclusive disse para os seus discípulos que eles deveriam visitar todos os lugares para pregar o evangelho. Lembremos que 'evangelho' significa "Boa Nova". Assim, deviam pregar a Boa Nova sem levar dinheiro, roupas e provisões. A razão para isto é que eles deviam se integrar nas comunidades onde fossem pregar e aceitar o óbulo ou hospitalidade que lhes fosse oferecido. Com o passar dos séculos o rigor destas regras foi sendo diminuído.

Atualmente, a Ordem dos Franciscanos e dos Trapistas, são as que mais se aproximam das ordens budistas. É curioso observar que nas ordens budistas e nas cristãs os monges devem fazer três votos: de pobreza, castidade e obediência. Só que entre os cristãos, o voto de obediência era para com o chefe da Ordem. Entre os budistas, no entanto, o voto é sempre voltado para o Dharma, isto é, obediência aos ensinamentos do Mestre.

Os monges budistas, como seus irmãos cristãos, comprometem-se a divulgar a doutrina libertadora.
Porém, eles são extremamente respeitosos para com as pessoas. Ao contrário de seus irmãos cristãos, não tentam converter os outros contra sua vontade. Na verdade, é uma prática budista que quando um monge chega num determinado lugar, ele só fará uma pregação sobre um determinado assunto se for solicitado.

O papel da teologia é outra área de paralelos. Tanto Buda quanto Jesus não estavam preocupados com teologia e dogmas, ao contrário do que parece ser a preocupação daqueles que se dizem herdeiros dessas duas tradições. Mas a preocupação central destes dois grandes seres era com a realidade da vida humana e a libertação do sofrimento. Ambos pregavam que o ser humano deve se dedicar ao supremo bem, sempre imutável e confiável. Jesus chamava esse Bem Supremo de Deus-Pai. E Buda chamava esse bem supremo de Dharma. Vimos anteriormente que o budismo é uma religião não-teísta, mas que os ensinamentos do senhor Buda, o Dharma - que significa Lei - é um reflexo da Lei Maior. Essa Lei Maior, a Lei que rege o universo e toda a manifestação, é uma expressão de Deus. Se meditarmos com atenção, vamos concluir que Deus sendo absolutamente transcendente, uma das poucas maneiras que podemos tentar conhecer a Deus, é conhecer as Leis que regem o nosso universo. Ainda que sem fazer referências a Deus, os mestres budistas procuram fazer exatamente isso.

Agora, uma diferença. Os autores gnósticos usavam mitos cosmogônicos e cosmológicos como instrumentos para suas instruções. A cosmologia tem como objetivo apresentar o processo da criação desde o nível mais sutil, Deus transcendente, até o mais denso, o nosso mundo material, passando por todos os estágios intermediários. A razão para o uso deste método é a instrução sobre a lei dos ciclos, que rege tanto o macrocosmo (o universo) como o microcosmo (o homem). O processo de surgimento, ou emanação, oferece para o buscador da verdade as indicações do caminho de retorno à Fonte, que é o objetivo último de todos os seres. No entanto, como o budismo é uma religião não-teísta, eles não podiam servir-se de cosmogonias como os cristãos.

A NATUREZA LUMINOSA
A natureza do homem é outro paralelo. Tanto os budistas como os cristãos verdadeiros dizem que somos todos Budas, somos todos Cristos. Só que ainda não nos tornamos conscientes de nossa realidade última e, por isso, ainda não alcançamos o estágio da perfeição, a estatura da plenitude do Cristo em nós. Ainda somos Budas, ou Cristos, em estado de semente. Cristo, ou Buda, encontra-se em nosso interior em forma latente. Todo o ensinamento dos Mestres é voltado para fazer com que Buda, ou Cristo, em nosso interior, possa manifestar-se em toda sua plenitude. Por isto o apóstolo Paulo disse: "Não sabeis que sois um templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?" (1 Co 3:16), e nos urgia a desabrocharmos nossa natureza interior: "Cristo em vós, esperança de glória." (Cl 1:27).

A natureza de Buda se encontra na mente de cada um. É a pura luz de Rigpa, a natureza essencial da mente. O conhecimento de nossas inúmeras fraquezas dificulta a aceitação da premissa básica de nossa natureza divina. No entanto, podemos valer-nos da imagem do lótus que tem suas raízes no lodo, portanto, na matéria, tem seu caule estendendo-se através da água, portanto, do mundo das emoções, de vibrações geralmente pesadas, mas que abre a sua flor ao sol, no mundo superior do ar, da mente, onde exala o seu perfume. O lótus também tem outra característica muito pertinente para o ser humano. Em cada semente de lótus encontra-se uma miniatura da planta adulta. Nossa vida assemelha-se ao lótus, assentada no lodo da materialidade mas almejando alcançar o alto. Como o lótus, temos também dentro de nós a semente das características divinas que vamos manifestar quando desabrocharmos e alcançarmos nossa plenitude.

Na tradição cristã a imagem da semente é utilizada na parábola do grão de mostarda, a menor de todas as semente, que quando cresce torna-se a maior de todas hortaliças dando sombra e abrigo às aves do céu.
Outras semelhanças importantes são as imagens da porta e do caminho. Ambos, Cristo e Buda são descritos como a porta e o caminho. Buda mostra o caminho para a libertação. A tradição budista, porém, afirma que existem oitenta e quatro mil portas. Essas seriam as portas do dharma, constituindo o corpo Dharmakaya.

Mestre Jesus, o Cristo, por sua vez disse:

"Eu Sou a Porta das ovelhas",
"Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai senão por Mim".

BUDISMO NA JUDÉIA?

Como explicar tanta semelhança entre as duas tradições? Existem várias teorias para isso. Uma é que Jesus teria vivido na Índia dos doze aos trinta anos, onde teria recebido instruções budistas. Pessoalmente não creio que Jesus tenha vivido na Índia. Quem teria vivido na Índia no século I dC. foi Apolônio de Tiana e as estreitas semelhanças entre estes dois personagens históricos têm induzido muitos estudiosos a erro. Por isto muitos acreditam que Jesus viveu na Índia e, tendo recebido ensinamentos budistas, esta seria a explicação para os paralelos entre as duas tradições.

Uma outra é que os monges budistas enviados pelo rei Ashoka a várias comunidades do Oriente Médio, tiveram contato com as comunidades essênias para as quais transmitiram o dharma. Mais tarde, Jesus e seus discípulos teriam aprendido a essência dos ensinamentos budistas na comunidade essênia de Qumram. Vários indícios históricos me levam a crer que esse processo realmente ocorreu. Algumas fontes esotéricas indicam que um monge budista avançado teria sido enviado à Palestina nos tempos de Jesus, com a missão específica de contatar a comunidade de Qumram. Esse monge teria levado vários textos budistas para a Palestina, da forma usual naqueles tempos, ou seja, de memória. Esse monge tornou-se um discípulo de Jesus sendo conhecido pelo nome de Tomé. É por essa razão que a tradição cristã indica que um dos discípulos de Jesus, depois da morte do Mestre, foi para a Índia onde converteu muitas pessoas e estabeleceu no sul da Índia, em Madras, uma comunidade do cristianismo primitivo. Cerca de dezesseis séculos mais tarde, quando os missionários católicos e protestantes chegaram à Índia, encontraram essa comunidade cristã firmemente constituída.

Temos, então, várias teorias para explicar os paralelos identificados entre as duas tradições.
Estamos certos, porém, que alguns estudiosos vão descartar todas estas teorias argumentando que, mais que teorias elas são fantasias, pois não existem provas concretas para fundamentar nenhuma delas. Mesmo neste caso poderíamos sugerir ainda outra maneira para explicar os paralelos entre as tradições budista e cristã. O argumento seria de que as semelhanças são naturais porque todas as tradições originam-se de uma única fonte. Essa é a religião-sabedoria.

"Não há religião superior a verdade," reflete esta realidade milenar, pois a verdade subjaz a tudo o que é ensinado pelos grandes seres, os instrutores da humanidade. E essa verdade só pode ser uma só. Ela é apresentada com diferentes roupagens para diferentes culturas ao longo do tempo. Porém, à medida que mergulhamos na essência do ensinamento de cada religião, deixando de lado as idiossincrasias separatistas enganosas, percebemos a beleza do ensinamento que une toda a família humana. Assim, não deve ser nenhuma surpresa para nós, verificarmos que existem muito mais convergências entre budismo e cristianismo do que pontos de divergências.

Para encerrar esta apresentação sintética e parcial dos paralelos entre as tradições budista e cristã, gostaria de chamar a atenção para outra convergência que está mascarada por uma aparente divergência gritante entre budismo e cristianismo. Trata-se da aparente oposição entre prática ativa e fé passiva. Para os budistas, a prática dos ensinamentos é tão fundamental que eles gostam de chamar a si mesmos de praticantes, mais especificamente, de praticantes do dharma.

Os cristãos, por sua vez, orgulham-se de ser conhecidos como crentes ou fiéis. Sua característica religiosa fundamental seria a crença em Jesus, que veio ao mundo para morrer na cruz para remir os pecados do mundo. Se observarmos a realidade da vida do cristão comum, chegamos à conclusão de que o cristianismo não dá muita importância às práticas espirituais. A transformação interior, baseada nos ensinamentos e no exemplo de vida de Jesus, não constitui o objeto central da religiosidade cristã, mas sim a atitude de crença nos dogmas e participação nos rituais externos da Igreja, como a ida a missa ou ao templo.

Reiteramos, no entanto, que nossa comparação é com o cristianismo primitivo e não com o cristianismo posterior ao Concílio de Nicéia, no início do quarto século.

A atitude das primeiras comunidades cristãs, mais tarde conhecidas como gnósticos, era inteiramente diferente no que diz respeito às práticas espirituais. Vale lembrar que nas primeiras décadas após a morte do Salvador, os discípulos do Mestre eram conhecidos como "seguidores de Jesus" porque procuravam emular o exemplo de vida de Jesus. Portanto, a prática espiritual estava no centro da vida daquelas comunidades, conhecidas pelo termo grego original de eklesia, ou seja, a assembléia dos praticantes.

Isto pode ser confirmado por uma passagem que escapou da tesoura dos censores posteriores, numa epístola de Tiago: "Tornai-vos praticantes da Palavra", ou seja, dos ensinamentos de Jesus, "e não simples ouvintes, enganando-vos a vós mesmos." Se tivermos a atitude passiva de ouvir a pregação do padre ou pastor no fim de semana sem colocamos em prática em nossa vida diária os ensinamentos nela contidos, não iremos muito longe na vida espiritual.

Uma análise mais aprofundada da Bíblia revela outras passagens em que Jesus ensinava a importância da prática espiritual. Por exemplo: "Pedi e vos será dado. Buscai e achareis. Batei à porta e ela vos será aberta". Alguns "fieis e crentes" julgam que esta passagem é uma licença do Mestre para pedirmos, no atacado e no varejo, todas as benesses que queremos que Deus nos dê de graça. As comunidades monásticas, para não dizer os místicos e santos, sempre souberam a verdade, ou seja, que a prática espiritual é a essência da verdadeira religiosidade cristã.

Ora, como Deus é Espírito temos que pedir, buscar e bater à porta de uma forma espiritual. Como é que nos comunicamos com Deus? Como mostramos nosso amor a Deus? Como nos sintonizamos com Deus? A resposta óbvia é: cumprindo a vontade de Deus, ou seja, agindo como Deus nos ensina através dos seus grandes mensageiros, e de seu filho unigenito. E o objetivo dos ensinamentos de todo grande Mestre é sempre a mudança de vida do ser humano, da vida mundana para a vida responsável voltada para o Alto em busca da perfeição, que é a estatura da plenitude de Cristo.

Raul Branco