quarta-feira, 28 de março de 2012

Sufis



Assim como a supressão de um livre desenvolvimento interior, suscitada pela ignorância, faz parte do ser humano, assim também faz parte de sua natureza a propensão à busca por uma via de acesso ao divino, e isso jamais pode ser suprimido por muito tempo.

Uma compreensão interiorizada do Corão e de outras escrituras sagradas fez surgir uma nova prática de vida, libertando seus adeptos dos entraves sociais, do dogma imposto e dos valores da época.

Aqueles que seguiram esse caminho foram chamados "sufis", devido ao nome que se dava à veste de lã que usavam.

As descrições relativas às experiências que demarcam a aprendizagem,bem como as numerosas parábolas, testemunham da profundidade alcançada pelo homem que, tendo se tornado uno com a Gnosis, renasce para uma nova aurora.

Felizmente, foram conservados numerosos vestígios dos trabalhos sufis que tratam da vitória sobre o "eu" graças a uma orientação que encontra o seu ponto central em Deus.

Essas obras descrevem aquilo que os cátaros chamavam endura, a via na qual o eu capitula diante da alma divina interior que desabrocha.
Considerações detalhadas alternam com uma abundância de sentenças curtas que levam à reflexão. Elas mostram que os esquemas de pensamentos convencionais, que servem de guia aos desgarrados, são totalmente impróprios para o caminho de libertação da Alma.

Esses escritos revelam que vive-se o caminho "no presente", em nossa vida cotidiana, e que cada passo é dado na Luz disponível a cada instante.
Atravessar o deserto é um empreendimento suicida para aquele que previamente não avaliou as distâncias entre as etapas, não localizou os oásis, as zonas de sombra, os poços, e não administrou previdentemente os recursos alimentares e a manutenção da montaria.

Por analogia, os sufis distinguem diferentes "estados" (hal) e diversas "etapas" (magam) pelos quais o peregrino deve necessariamente passar.

Daí a comparação entre a viagem através do deserto e a caminhada do buscador da verdade.
Cada passo implica num esforço conscientemente orientado.

Para um, trata-se de encontrar sombra, um poço, um oásis; para o outro, uma faceta do ensinamento, uma fonte de aprofundamento para a consciência.

Ambos buscam um meio de avançar e não sucumbir. O oásis é o símbolo do templo iniciático, a aquisição interior, o tecer do novo manto da alma.

A viagem segue o seu curso. As etapas se sucedem, mas as aquisições permanecem.

É dito: Cada mudança de estado de consciência é um dom.

A viagem, o percurso mesmo, é uma graça. Essa progressão ao longo dos sucessivos estados de consciência é o fruto de pura magnanimidade, embora um esforço extremo, da parte do candidato, seja necessário.

Mas a cada etapa sua aquisição é uma posse firmemente estabelecida que lhe permite passar à etapa seguinte.

Al-Ghazzali, um teólogo árabe, ligou-se ao sufismo após anos de pesquisa e tentou conciliar a ortodoxia islâmica e o sufismo; mas semelhante tentativa era, por definição, fadada ao fracasso.

Espírito sistemático, esse autor distingue três aspectos para cada estágio: o ensinamento, o estado de consciência e o comportamento.

Ele diz:
"A compreensão é o cepo da árvore. Ela gera os estados de consciência que correspondem aos ramos, que por sua vez geram um comportamento que corresponde ao fruto. Isso se aplica a todos os estágios do caminho que conduz a Deus."

Na prática, as experiências da vida não se desenvolvem de modo tão regrado assim, a não ser na literatura.

Na realidade, as diferentes fases e estados de consciência se interpenetram e se influenciam mutuamente.
Nisso não há nada de surpreendente, pois podemos constatar numerosas variantes sobre esse tema.

Arrependimento (TAUBA) A primeira etapa a vencer no caminho, segundo o sufismo, é o arrependimento ou conversão (tauba).

Quão justo e irrefutável é isso! Especialmente se considerarmos a noção tauba como sendo a consciência torturante de se estar separado da vida original.

Essa é a primeira força requerida para nos desviarmos do caminho largo da religiosidade inconsciente, a da massa, sharia. Isso só é possível graças a uma consciente inversão no caminho de vida (freqüentemente devida a fatores exteriores) e encetar um novo comportamento, tariqa.

Uma lenda conta que uma noite o sufi Ibrahim Ibn Adham ouviu um ruído no telhado de seu palácio em Balkh. Os servidores encontraram lá
um homem que, levado diante de Ibrahim, fingia procurar no telhado o camelo que tinha perdido. O príncipe, em vista do absurdo da empresa,
repreendeu-o acerbamente. O homem disse a Ibrahim que suas tentativas de encontrar a paz celeste e uma autêntica vida espiritual em meio a todo aquele luxo era igualmente tão absurda quanto procurar um camelo no telhado. A essas palavras, Ibrahim experimentou um profundo arrependimento e se afastou de suas riquezas. Uma mudança, uma reviravolta repentina pode acontecer por ocasião de circunstâncias fortuitas, dando início a uma nova fase de desenvolvimento da consciência.
Segundo os textos, trata-se de um momento decisivo em que, pela primeira vez, a pessoa se volta conscientemente para o campo de vida original, para Deus. Um golpe de sorte, uma decepção ou um encontro particular podem servir como desencadeadores desse processo.

Elevado por um instante acima de sua consciência comum, o buscador "contempla" o ideal a ser alcançado.

O importante é que, quando o coração desperte de seu sono indolente, o homem veja sua condição lastimável,pelo menos em relação a esse ideal.

Tudo isso ele recebe porque a graça lhe é concedida e a divina admoestação se faz ouvir no mais profundo do ser, com o ouvido do coração.

A prática de tauba, contudo, levou um grande número de sufis a uma tal aversão pelo mundo que eles caíram no outro extremo: ascese e pobreza tomaram a amplitude de um fenômeno cultural, em vez de permanecer apenas um contingente.

Desprendimento e pobreza (FAQR) O pobre é tão monopolizado por sua pobreza quanto o rico o é por sua riqueza.
Para os observadores, a rejeição do mundo é o aspecto mais surpreendente do sufismo.
Os tratados abundam em exemplos de vida de pobreza (faqr) e de afastamento do mundo.

Essas interpretações tipicamente exteriores de uma condição interior exercem uma influência daninha sobre os candidatos, especialmente os principiantes.

Por meio de uma redução de sua dieta alimentar e longos períodos de jejum, o candidato espera chegar ao desprendimento do mundo e desse
modo ser agradável a Deus.

Riqueza e preocupação com bens materiais, como em outras religiões, podem ser consideradas obstáculos ao caminho espiritual, o que resulta que a ascese e a total negação do mundo material tornam-se, não raro, o orgulho do sofrimento.

Um sábio instrutor observa que um excesso de ascese e de negação nada mais é que uma "expressão de ansiedade e medo". Essa manifestação de ansiedade diante da ordem de natureza na qual vivemos é tão perniciosa quanto um excesso de riqueza e de opulência.
Trata-se tão-somente de conhecer suas possibilidades e limites inerentes a cada circunstância.
A aversão pelo mundo consiste em considerar as coisas em seu aspecto efêmero, de modo que elas percam, aos nossos olhos, toda importância, facilitando-nos a tarefa de nos afastarmos delas.

Numerosos sufis consideram a pobreza e a ascese como a indicação de sua vitória sobre o mundo, seguros de que sua vida exterior reflete seu estado interior.
Mas, para aqueles que buscam uma vida interior, não é o mundo que constitui o principal obstáculo, e sim o eu.

Trata o teu eu como algo sem importância, embora inevitável.
Aquele que é mestre de seu eu é poderoso, aquele que se deixa governar por ele é fraco.
Os desejos e as tendências que levam o homem à ação são associados pelos sufis aos impulsos instintivos e à alma-sangue, nafs. O nafs é um sedutor, pelo qual não se pode deixar levar.

A alma (terrestre) é como um cavalo diabólico. Quando soltamos as rédeas,
podemos ter certeza de que seremos derrubados.

Algumas biografias mostram que uma mudança intervém na vida do sufi quando ele vê os verdadeiros obstáculos e seu caminho não é mais caracterizado pelos extremos, por privações,tanto no plano externo quanto
no interno.

O desprendimento interior é fruto da compreensão.

Enquanto a pobreza exterior está ligada à aparência, a pobreza interior está estreitamente relacionada com o "diminuir" (literalmente: desfazer-se), com a "rendição", um estado ulterior.
Não me devolvas aquilo que me retirastes e não me deixes ver o meu eu,após teres dele me protegido.

Confiança em Deus e auto-rendição (TAWAKKUL). A confiança em Deus é um estado de despreocupação interna e externa, resguardado pela solicitude plena do amor de Deus.

Ela representa o próximo estágio importante no caminho do sufi. É um estado de consciência extremamente rico e inspirador, como testemunham estas duas citações:

Encontra o repouso aquele que impele o amor aos confins do seu coração.

Quando o coração está vazio, a renúncia ao mundo aí penetra, prodigalizando a confiança em Deus.

Mas o contrário também é correto:
Quando a confiança em Deus floresce de maneira sadia, a renúncia também vigora, pois a justa confiança em Deus possibilita a renúncia correta.

Essa fase da renúncia e do desprendimento é de grande importância e também cheia de nuanças, pois se relaciona à libertação das forças do eu que dirigem a personalidade, e isso não pode ser feito às pressas.
Uma nova consciência nascente e responsável deve servir de fundamento ao processo.

Grande vigilância e compreensão são necessárias ao candidato que também tem de dispor de uma boa estabilidade interior, de um equilíbrio de alma.

Somente então ele pode confiar inteiramente seu destino ao próprio Deus interno.

Possuir total certeza, denomina-se fé, tawakkul.

Paciência (SABR) A paciência é para a fé o que a cabeça é para o corpo.

Ela consiste em permanecer em harmonia tanto na provação como no bem-estar.
A longanimidade perfeita (sabr) diante dos golpes do destino e do pesar representa, no Oriente Médio, um dos pilares da senda.

Distinguem-se três níveis de realização:
1. esforçar-se por ser paciente,
2. suportar pacientemente as tentações,
3. mostrar-se paciente em todas as circunstâncias.
Essa sutil distinção é um exemplo da extrema precisão com que os sufis
definem as fases e os estados internos do caminho. Inúmeros relatos atestam
da necessidade da perseverança e da paciência.

Aqui, a figura clássica que descreve a vitória sobre o eu, a travessia do deserto, é bastante utilizada. É uma força especial que faculta o exercício da paciência, uma força graças à qual, no final de um longo treinamento, o candidato chega à impassibilidade interior.

De um lado há a orientação indefectível para Deus, a perseverança com Deus, e de outro lado, a abertura constante para a força divina na hora da tentação, a perseverança sem Deus. São tantas as pedras que se acumulam no caminho! Para alcançar o objetivo é preciso superar inúmeros obstáculos, o que é ilustrado pela curta história que segue:

Um dia, um homem chegou à casa de Ash-Shibli e perguntou-lhe:
Qual é a prova mais difícil de suportar para aquele que se exercita na paciência?

Ash-Shibli respondeu: A paciência em Deus.
Não, disse o homem. Ash-Shibli: A paciência para Deus. Não, disse o homem. Ash-Shibli: A paciência com Deus. Não, disse o homem.
Ash-Shibli: Então, o que é? E o homem respondeu: A paciência (de tudo suportar) sem Deus.
A essas palavras, Ash-Shibli gritou tão forte que quase rendeu a alma.

Amor (MAHABBA) e diminuição (FANA). O amor é o fruto da compreensão.

Se por um lado o amor terrestre nos liga a uma outra pessoa, a um objeto ou a um interesse qualquer, por outro lado o amor divino possui uma totalmente outra definição: é a força que conduz de etapa em etapa, ao longo de um caminho de evolução, até se tornar um estado de consciência.

Assim, o conceito Arif, aquele que possui o entendimento, aplica-se freqüentemente aos sufis avançados.

Al-Ghazzali escreveu:

"O amor sem a compreensão é impossível, pois não se pode amar o que não se conhece."

Na literatura sufi, a noção "bem amado" representa um papel importante, pois a pessoa amada é o símbolo da ligação com o divino.

"O amor, é dito, é um fogo no coração, que queima tudo o que o amado não deseja."

O amor, nascido do conhecimento interior, representa o último estágio do caminho.
No início, é a obediência absoluta a um mestre (shaikh) que é exigida do candidato. O estágio final é marifa, o conhecimento interior divino.

Somente o candidato avançado conhece a força e o potencial do verdadeiro amor servidor, que é a única via de reintegração com Deus.

Para um simples fiel da religião muçulmana (islã significa submissão à vontade de Deus), é quase impossível ultrapassar o estágio de obediência a um mestre.

Por isso, coloca-se o amor no mesmo nível que a diminuição do eu.

O amor devotado a Deus, que não exclui nenhuma parte da criação, alimenta-se da aspiração à revelação divina e se consolida pelo rasgar dos véus que impedem a contemplação da transcendência interior.

Após o esquecimento temporário, há a asnai, o conhecimento reencontrado da origem.
O estágio de diminuição do eu é indispensável para encontrar o conhecimento do início absoluto e do esplendor da eternidade.

Este último degrau no caminho da iniciação sufi não é, em realidade, um fim.
Poder-se-ia dizer que aqui se perde o rastro daquilo que nossa consciência natural pode conceber.
A partir daí, o sufi caminha para o verdadeiro objetivo da existência humana,o advento do homem-espírito, a realização final do plano divino.
Embora seja impossível comunicar algo sobre esse nível de elevação do processo, pode-se, contudo, decodificar os escritos redigidos pelos mestres a seus alunos.

terça-feira, 20 de março de 2012

GNOSIS


As Escolas de Mistérios existiram até na época de Jesus. Algumas se encontravam em Eleusis e em Delfos, na Grécia, onde Orfeu e Apolo eram venerados como guardiães dos Mistérios.

Na Pérsia, elas ensinavam a sabedoria de Zoroastro; no Egito e na Ásia Menor, elas se baseavam no ensinamento de Atis ou Osíris.

O Antigo Testamento refere-sea elas em textos que falam dos Nazarenos, homens consagrados a Deus, como Sansão e Gedeão.

As pesquisas atuais provam que os profetas conheceram estas Escolas dos Mistérios, pois eles sempre estavam ensinando que os rituais exteriores representavam processos internos que conduzem à ligação entre o homem e Deus.

Nesta época, sabia-se que, se o homem quisesse unir-se a Deus, deveria ultrapassar o ponto mais baixo da materialidade.

Os que já eram iniciados recebiam o conhecimento encerrado nos Mistérios.

Neste processo, os mediadores estavam em ligação consciente com as forças divinas e suas leis e viviam através delas. Portanto, é de interesse secundário saber quais eram os símbolos
utilizados para transmitir este conhecimento.

Até a vinda do Mestre Jesus, o Cristo, estes Mistérios foram mantidos em segredo.

Mestre Jesus mostra claramente, àqueles que o ouvem, que a natureza terrestre pode ser anulada por um processo consciente, no decorrer do qual acontece o despertar e o crescimento do “Deus em mim”.

“Quem quiser perder sua vida por mim” (por amor ao Espírito divino) “a ganhará”.

A vida do Mestre Jesus dá testemunho do processo que, até esta época, só poderia ser cumprido entre as paredes de uma Escola de Mistérios.

Em seus pensamentos, seus sentimentos e sua vontade, ele renunciou a seu egocentrismo para que o filho de Deus florescesse dentro dele.

A humanidade havia chegado ao ponto em que os Mistérios deviam ser revelados para garantir seu progresso espiritual.

Tornou-se possível vivenciar o processo da morte e da ressurreição interiores de modo autônomo e responsável.

Isto significa que, há cerca de 2.000 anos, o despertar do verdadeiro ser podia tornar-se um processo consciente.

Portanto, os Mistérios estavam abertos a todos e já não eram reservados exclusivamente a um pequeno grupo de eleitos, iniciados, por assim dizer, exteriormente.

A iniciação tornava-se um processo interior que era preciso ser vivido com plena consciência.

Mestre Jesus revelava o conhecimento oculto; e este conhecimento, a Gnosis, surgiu como uma corrente historicamente visível nas regiões à volta do Mediterrâneo.

Sempre nos perguntamos como a Gnosis surgiu tão de repente, pois parece que ela veio ao mundo como que saída do nada, sem preparação, e já completamente adulta.

Ela carregava em si traços de todas as culturas e tradições do tempo. Mas qual era sua origem? A Pérsia, Israel, a Grécia, o Egito?

Daí para a frente, as Escolas de Mistérios, que jamais deixaram de seguir o mesmo objetivo, podiam revelar abertamente sua doutrina, e a sabedoria gnóstica foi transmitida quase simultaneamente, sob formas bem diversas, entre os judeus, os gregos e os persas.

Qual forma prevaleceu? Isto não tem a menor importância, pois destes locais sagrados irradiou-se uma poderosa corrente universal de força gnóstica que veio sustentar a sabedoria que já havia
sido divulgada.

Muitos se indagaram por que tantos grupos gnósticos falavam de salvadores do mundo diferentes de Jesus, agora que Jesus era considerado “o Salvador”, a força salvadora.

Em alguns manuscritos de Nag Hammadi, os salvadores têm nomes egípcios e persas, enquanto outros mencionam Mestre Jesus.

Os Hierofantes dos Mistérios que abriram suas portas na época de Jesus
sabiam que a sabedoria estava manifestada nele e que começava uma nova fase do caminho que conduz à meta final, mas alguns ainda utilizavam nomes dos salvadores originais de períodos anteriores.

Por exemplo, alguns escritos de Nag Hammadi falam de Set, filho de Adão.

Outros adaptaram seus ensinamentos ao novo período e introduziram o nome do Mestre Jesus, o Cristo.

Mas será que é tão importante saber o nome dado à força libertadora,
para quem quer percorrer o caminho e tornar-se o verdadeiro Homem?

Não é verdade que é ao Homem original que estes escritos estão-se referindo?

Também fica claro porque os escritos gnósticos sempre mostram a libertação como parte de um grande processo cósmico.

Quando se trata da salvação no Novo Testamento, pouco se menciona a criação do mundo e o papel da humanidade neste processo, e não há alusão a respeito da humanidade anterior à
queda, nem sobre a possibilidade de uma volta a esta humanidade.

O Novo Testamento se limita em falar sobre a libertação em si enquanto a sabedoria tradicional judaica, grega e egípcia demonstra claramente as relações cósmicas deste processo.

É por isso que todos os sistemas gnósticos propõem mitos que explicam o nascimento do mundo espiritual, a criação do mundo terrestre, as hierarquias espirituais dos anjos e arcontes que
governavam o mundo.

Diz-se que o conceito “Gnosis” procedia de características psíquicas e espirituais do tipo humano mediterrâneo de cerca de 2.000 anos atrás.

Este homem vivenciava, então, uma espécie de vazio, pois todos os valores espirituais e tradicionais estavam virando ruínas.

Todas as certezas estavam-se desfazendo.

As estruturas sociais, as normas e os valores gerais já não ofereciam nenhum apoio.
A humanidade estava enfrentando um caos indescritível.

Neste sentido, é evidente o paralelo com nossa época.


Pensou-se que, para preencher este vazio, alguns imaginaram uma série de certezas e de processos sobrenaturais no interior dos quais seria possível alguém se retirar a fim de poder, ao menos, continuar a existir.

Segundo esta teoria, os sistemas gnósticos não passam de reações ao ambiente e à natureza, e não possuem nenhum valor objetivo.

Mas, de acordo com escritos gnósticos autênticos, mostra-se, entretanto, que as experiências de seus autores não dependem de modo algum das circunstâncias sociais ou outras.

São experiências interiores que somente podem ser vivenciadas quando o princípio espiritual latente no ser humano está despertado e lhe mostra a instabilidade e a impiedade do mundo.

Assim, não é importante se o mundo está bonito ou caótico.

Pode acontecer, porém, que estas experiências somente possam realizar-se quando todos os sistemas antigos se desfazem e quando o ser humano se encontra em total confusão.

Não podemos marcar as experiências gnósticas com uma etiqueta histórica, psicológica ou cultural.

Também não se trata de colocar a Gnosis na lista dos produtos da sabedoria tradicional.

A Gnosis sempre será uma experiência direta da Luz divina.

Se quisermos ligar novamente a Sabedoria dos Mistérios ao desenvolvimento da História, podemos somente dizer que os antigos símbolos servem para representar processos que se manifestam.

Os locais sagrados servem, por assim dizer, de vestes para a sabedoria.

Esta sabedoria carregada de força libertadora impulsiona o gnóstico a seguir o caminho indicado dentro de seu próprio ser interior, para aí buscar a libertação de sua alma.

Se quisermos estudar a origem e o significado do conceito “Gnosis”, será preciso perguntar de onde provém a Sabedoria original das Escolas dos Mistérios de todos os tempos.

Os biólogos sempre gostam de explicar que a origem da vida vem de outro planeta. Mas isto somente desloca esta origem, sem explicá-la.

O mesmo acontece com a origem da Gnosis. As experiências gnósticas dizem respeito à vivência individual de uma ligação direta com Deus. Estas experiências estão fora do tempo, fora da
História, fora dos modelos culturais. Não são nem especulações, nem invenções arbitrárias.

Elas tratam do ser verdadeiro dentro do homem, da realidade do mundo de onde provém o homem interior e do que é característico da Gnosis, do caminho que é preciso ser vivenciado para voltar ao mundo original.

Trata-se de uma verdade universal.

Esta se manifestou aos mestres e a seus alunos.

Ela se manifestou a Jesus, o Cristo, que a ensinou publicamente.

Suas experiências são confirmações das experiências dos gnósticos.


Muitos deles foram seus discípulos, e outros, os discípulos de períodos mais recentes.

Todos deram testemunho da mesma coisa porque vivenciaram o mesmo processo dentro de suas almas.

Assim, pode-se dizer que a Gnosis se manifesta com toda a certeza em momentos precisos da História da humanidade; e que, no momento em que os homens estiverem maduros o bastante para
receber este conhecimento direto, os instrutores da Gnosis aparecerão.

É o que acontece em nossos dias, quando inúmeros buscadores podem encontrar dentro de si mesmos a senda que conduz à Gnosis.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Galileu Galilei



Em 22 de junho de 1633, numa sala do convento dominicano de Santa Maria Sopra Minerva, em Roma, encerrou-se um dos episódios mais nefastos da história: o julgamento de Galileu Galilei pela santa inquisição, sua condenação e subseqüente renúncia à crença de que a Terra gira em torno do Sol.
Ao sair do tribunal, Galileu disse uma frase célebre: "Epur si Muove!", que traduzida diz, "E, no entanto, ela move-se". Murmurou esta frase depois de ter sido obrigado a retratar-se, diante da inquisição, sua crença de que a Terra se move em torno do Sol.
" Eu, Galileu Galilei, filho do falecido Vincenzio Galilei de Florença, com a idade de setenta anos, sendo trazido pessoalmente a julgamento, e ajoelhado diante de vós, Eminentíssimos a Reverendíssimos Lordes Cardeais, Inquisidores Gerais da Comunidade Cristã Universal contra a depravação herética, tendo diante de meus olhos o Sagrado Evangelho que toco com as minhas próprias mãos, juro que sempre acreditei, e, com a ajuda de Deus, acreditarei no futuro, em todo artigo que a Santa Igreja Católica Apostólica Romana mantém, ensina e prega. Mas por ter sido ordenado, por este Conselho, a, abandonar completamente a falsa opinião que mantém que o Sol é o centro e imóvel, e proibido de manter, defender ou ensinar a referida falsa doutrina de qualquer maneira (...) Estou desejoso de remover das mentes do nossas Eminências, e de todo Cristão Católico, essa veemente suspeita acertadamente mantida a meu respeito, portanto, com sinceridade de coração e fé genuína, eu abjuro, maldigo e detesto os Referidos erros e heresias, e, de modo geral, todos os outros erros e seitas contrários à referida Santa Igreja; e juro que jamais no futuro direi ou asseverarei seja o que for, verbalmente ou por escrito, que possa motivar uma. Suspeita similar de mim; mas que se eu souber de algum herético, ou de alguém suspeito de heresia, denunciá-lo-ei a este Santo Conselho, ou no Inquisidor ou Ordinário do lugar em que eu esteja. Juro, mais ainda, e prometo que cumprirei observarei plenamente todas as penitências que a mim tenham sido ou venham, a ser impostas por este Santo Conselho. Mas, caso aconteça que eu viole qualquer de minhas promessas, juramentos e protestos citados, eu me sujeito a todas as dores e punições decretadas a promulgadas pelos sagrados cânones e outras constituições gerais e particulares contra delinquentes dessa descrição. Assim, que Deus me ajude, a Seu Sagrado Evangelho, que eu toco com as minhas próprias mãos; eu, o acima citado Galileu Galilei, abjurei, jurei, prometi e me comprometo como acima; e, em testemunho do que, com a minha própria mão subscrevi o presente escrito de minha abjuração, que eu recitei palavra per palavra."

Jacob Boehme - 2

"Deus está na sublime semelhança e não no espírito das estrelas e dos elementos; ele nada possui além de si mesmo em sua própria semelhança. E mesmo que ele possua algo, somente compreende aquilo que nasceu e emanou dele: a alma à semelhança de Deus. É por isto que tudo o que escrevo é parecido com o que escreve um aluno que vai à escola. Deus conduziu minha alma a uma escola maravilhosa, e eu realmente não posso admitir que meu ego possa ser ou compreender alguma coisa."

Neste mundo de informação ilimitada, será que Jacob Boehme (1575-1624) ainda tem algo a dizer aos homens modernos, que já sabem de tudo?

Qualquer pessoa que parta deste ponto de vista terá pelo menos um sorriso de complacência lendo os textos e pensamentos deste simples sapateiro de Görlitz na antologia de suas obras intitulada Viver na simplicidade de Cristo.

Mas quem, hoje, ainda fala tão convincente e profundamente de Cristo, de Deus e do Espírito Santo?

A teologia, o materialismo e as ciências, conduziram a humanidade ao mais baixo ponto de seu desenvolvimento.

Ódio, violência, guerra, genocídio fazem parte integrante da vida cotidiana.

"Viver na simplicidade", conforme escreve Jacob Boehme, é um conceito que se apresenta completamente diferente em 2012.

A prosperidade aproxima os modos de vida de inúmeras culturas diferentes e há tal excesso de coisas materiais que a simplicidade é novamente percebida como "a característica do que é verdadeiro".

Mas será que uma decoração interior sóbria, quase vazia, com uma única e bela obra de arte... e todo o conforto, testemunham esta simplicidade descoberta por Jacob Boehme?

"Não escrevo para aqueles que estão imbuídos de preconceitos, que compreendem e sabem tudo mas que no entanto não sabem nada, pois eles já estão satisfeitos e ricos, mas sim para os simples como eu, e assim me alegro com meus semelhantes."

Qualquer pessoa que tente captar algo da sublime verdade que Boehme quer transmitir a seus semelhantes deverá, portanto, se alistar entre os simples; somente assim ficará, talvez, esclarecido o que ele quer dizer por palavras e conceitos como Deus, Espírito e Cristo.

"Ninguém deve pensar mais a meu respeito além do que está vendo aqui, pois a obra de meu trabalho não é minha, ela não me pertence a não ser na medida em que o Senhor concedeu. Sou apenas seu instrumento, com o qual Ele faz o que quer. Digo-te isto como uma advertência, a fim de que ninguém tente encontrar em mim um homem que não sou, como se eu fosse um artista e fosse dotado de grande inteligência."

Portanto, não se trata de um estilo de vida sóbrio e moderno, de nenhuma obra artística ou científica.

Jacob Boehme deseja que seu leitor seja um buscador, alguém que aprenda todos os dias e cada vez mais a renunciar a seus próprios desejos.

Alguém que, aberta e honestamente, a partir da infinita variedade da vida cotidiana, queira penetrar até a "Vida na simplicidade de Cristo".

Quem era Jacob Boehme, na realidade?
O que este homem tinha a dizer a sua época?
E o que podemos aprender com ele?

Jacob Boehme nasceu em 1575, em Alteseidenberg, uma cidadezinha situada ao sul da cidade alemã de Görlitz, na fronteira polonesa. Sua data de nascimento fica no meio de um período muito movimentado, compreendido entre o início da Reforma (1517) e a atrocidade da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648).

As pessoas que tinham espírito conservador estavam preocupadas com a derrocada do mundo, com a vinda do Anticristo e com o anti-papismo, enquanto que os livres-pensadores se interessavam por um novo mundo que pudesse oferecer novas possibilidades à humanidade.

Jacob Boheme, piedoso e sério, nasce em um mundo em que as comunicações ainda estavam submetidas às limitações da distância. Ele se tornou aprendiz de sapateiro, formou família e
exerceu sua profissão. Nisto, ele não era nem um pouco diferente de seus semelhantes.

Em seu livro Aurora, a aurora nascente (A raíz da filosofia, da astrologia e da teologia, escrito em Görlitz, na terça-feira após Pentecostes, no ano de1612), ele descreve como, por quatro vezes, ele foi tocado pela luz.

Na segunda vez, ele pode "lançar um olhar até o fundo mais íntimo ou centro da natureza oculta". As idéias que ele tirou daí não cessaram de se confirmar, pois a cada dia ele encontrava no coração as maravilhas de Deus.

Sua alegria por estes toques era grande, mas ele mal falava dela, se bem que tentasse descrevê-la por si mesmo ou com a ajuda de alguns amigos.

Segundo ele, isto não era fácil. Tratava-se de verdades universais que sempre foram válidas, mas que são difíceis de serem expressas por palavras.

É que elas têm de ser experimentadas.

Jacob Boehme estava perfeitamente consciente disto. "As palavras matam a viva corrente divina." E ele lutou para traduzir esta força viva, pois ele queria servir-se da linguagem tão somente para descrever suas experiências, mas principalmente para transmitir a Verdade viva e fazer com que seus semelhantes pudessem senti-la.

Em 1613, um manuscrito caiu entre as mãos do pregador de Görlitz, Gregoire de Richter. Depois do ofício religioso, em que Boehme foi atacado do alto do púlpito, ele esperou o pregador para perguntar-lhe quais eram os pecados que ele havia cometido e como ele poderia remediar isto.

A resposta foi somente uma reação furiosa, e assim começou uma campanha de ódio contra o "filósofo teutônico".

As idéias de Boehme eram diametralmente opostas às convicções religiosas da época.
O que despertou mais a oposição e o ódio foram principalmente seus escritos sobre a vontade oculta de Deus e a vontade do homem.

Boehme considerava a força crística como mediadora na relação entre Deus e o homem. Cristo era o poder que permitia a reconciliação do homem, que se tornara novamente humilde com seu Deus.

Neste processo, Boehme não coloca o mediador em uma região celeste indefinida,mas dentro do próprio homem.

Ele fala de experiência própria, pois ele havia encontrado este poder dentro de si mesmo, sem ajuda de nenhuma instituição, pessoa ou texto.

Estes assuntos o aproximavam da tradição mística de Mestre Eckhart (1260-1327/29) e Thomas A’Kempis (1379-1471).

Suas experiências não-dogmáticas suscitaram reações, como acontece com todos os que buscam a verdade: processos, perseguições, campanha de calúnias, banimentos,prisão.

Nada lhe foi poupado. Além disto, proibiram a publicação de seus escritos.

Jacob submeteu-se durante seteanos a este veredicto, e depois reuniu em torno de si um círculo de simpatizantes para esclarecer certas passagens da "Aurora nascente", a pedido de alguns amigos.

Ele chamou este grupo de "Escola doPentecostes teosófico".

Com auxílio de imagens e de conceitos tirados da Bíblia, da astrologia e da alquimia, Boehme tentou fazer com que eles partilhassem com ele a compreensão da relação eterna entre Deus, o homem e o mundo. Seus escritos circularam exclusivamente em pequenos cenáculos.

Em 1619, ele vivenciou um novo impulso de luz e nos cinco últimos anos de sua vida ele escreveu trinta livros e mais de cem cartas, cerca de quatro mil páginas, no total.

Nesses textos, ele fala do fogo oculto que brilha dentro dele e das dificuldades que encontra em traduzir suas experiências por meio de palavras.

Cada novo texto foi sendo seguido por interrogatórios, ameaças e afrontas.

Além disto, Jacob Boehme reagiu em conformidade com suas idéias sobre as razões pelas quais Deus permite o sofrimento neste mundo:

"Pergunta: a razão fala: Por que Deus criou a vida sofrida e dolorosa? As circunstâncias da vida não poderiam ser melhores, sem sofrimentos e tormentos, posto que ele é o começo e o fim de
todas as coisas? Por que ele tolera a oposição? Por que ele não faz com que o mal desapareça, posto que ele é o Único Bem em todas as coisas?

Resposta: Uma coisa não pode aprender a se conhecer sem oposição, pois, se ela não tivesse nada que lhe oferecesse resistência, continuaria indefinida e não se voltaria para si mesma.
E se ela não voltasse para dentro de si mesma, lá de onde ela provém em sua origem, ela nada saberia a respeito de seu estado.

Se a vida natural nãoconhecesse oposição e se ela não tivesse nenhuma finalidade, ela jamais se perguntaria a respeito das profundezas de onde ela saiu; assim, o Deus oculto continuaria desconhecido para a vida natural.

Por mais que tenha sofrido profundamente o "furor satânico" de seus perseguidores, que nada compreendiam de seus textos, Boehme continuou sendo clemente, pois sabia que a oposição é
inevitável e necessária.

Dizem que ele teria dito um dia que seu "inimigo" preferia um bom copo de vinho a uma discussão sobre o renascimento em Cristo.

Até sua morte, em 1624, este grande místico e filósofo foi ignorado pelo clero oficial. Recusaram-lhe um túmulo e uma homília.

Jamais foi publicado qualquer aviso de falecimento.

Ao lado de todos estes ultrajes, ele também teve reconhecimento e estima.

Na corte de Dresden, liam seus textos. Por mais que eles fossem oficialmente proibidos na Alemanha, eles seguiram seu destino até os buscadores, por intermédio de inúmeros simpatizantes de outros países.

O negociante holandês Abraham Willemszoon van Beyerland desempenhou um papel importante na impressão e na difusão de sua obra.

A influência de Boehme sobre o espírito dos europeus ocidentais é inegável.

 
Príncipes, sábios, filósofos, teólogos, esotéricos, todos se debruçaram sobre sua obra e aprenderam muito, sendo influenciados por elas.

Entre eles, nomes célebres: Leibnitz, Spinoza, Hegel, Schopenhauer e Isaac Newton.

As obras que escreveu são o maior monumento de conhecimentos teogônicos (concernentes ao surgimento dos primeiros princípios em Deus) e cosmogônicos (concernentes à criação do Universo e das criaturas) da história do cristianismo.
Boehme teria, sem dúvida, ficado bem espantado em saber que tantos grandes espíritos puderam dizer que eram seus discípulos, pois ele não se considerava nem um mestre nem um pastor, nem um ser excepcional!

Ele viveu muito lucidamente, em "divina oferenda", e transmitiu suas experiências e percepções àqueles que eram receptivos a elas.

É assim que tentou levar seus semelhantes ao renascimento pela força de Cristo, acontecimento interior não ligado ao tempo ou a dogmas.

No decorrer de quatro séculos, ele deu uma nova esperança a muitos. Assim, descobriram que o homem leva duas vidas: a do homem biológico que se constrói com ajuda de inúmeras forças naturais, e a vida cuja essência tem por origem Deus.

Somente poderemos atingir esta última graças ao renascimento pela força crística universal, processo que se desenvolve no homem interior.

O homem da natureza deve diminuir cotidianamente para finalmente se aniquilar a fim de que o ser de essência divina desperte.

Jacob Boehme não considerava Cristo como uma pessoa, mas como uma força recriadora.
Uma força una, "simples", que é preciso ser admitida no coração: a única força que sempre foi, é e será. É a partir desta força que se desenvolve a "verdadeira vida" que Jacob Boehme designa pelas seguintes palavras:

"Viver na simplicidade de Cristo".

 
*Obras em português, A aurora nascente, A sabedoria divina, A revelação do grande mistério, Os três princípios da essência divina, Quarenta questões sobre a alma.
 

terça-feira, 6 de março de 2012

BOGOMILOS CRISTIANISMO ORIGINAL

“Quando surgirá a aurora?
O nascimento do dia em que a humanidade haverá de se voltar para a luz
interior, a luz da verdade? Quando tiver vontade...?
Mas, enquanto espero, quero me esforçar como se esse dia já tivesse chegado.”

Zoroastro

"A tolerância é uma virtude mais social do que religiosa”, afirma Steven Runciman, especialista em história dos bogomilos.
“Uma atitude tolerante em relação às crenças alheias contribui sem dúvida para uma sociedade harmoniosa; porém essa atitude é impossível para os que possuem uma forte convicção religiosa.
Porque quando estamos convictos de ter encontrado a chave e o sentido supremo da vida, não
conseguimos admitir que nossos irmãos continuem tateando às cegas na escuridão.
Podemos reconhecer que, mesmo sem essa chave, eles possam conduzir suas vidas de maneira virtuosa e admirável, mas seu fardo será, a nosso ver, desnecessariamente pesado; é nosso dever ajudá-los a encontrar o verdadeiro caminho e mostrar-lhes a luz que os libertará.
As opiniões divergem quanto à natureza da ajuda que deve ser prestada: se a persuasão pacífica e um exemplo luminoso, ou a espada e o auto-de-fé.”
O autor conclui que “nenhuma pessoa religiosa de fato aceita abandonar um descrente à própria sorte”.
Poderíamos acrescentar que, quando outros interesses como poder, prestígio e riqueza começam a desempenhar seu papel, essa convicção religiosa se torna ilegítima.
Então, muitos indivíduos e até mesmo populações inteiras são sacrificados, territórios são devastados e reduzidos a cinzas, cidades são arrasadas.
Esse foi o pano de fundo do drama dos bogomilos, denominação coletiva de vários grupos, bastante diferentes entre si, que tinham em comum a aversão por um sistema religioso centralizador que sufocava sua vivência individual da espiritualidade e aniquilava sua liberdade pessoal.
O período histórico a que nos referimos é designado com razão como “a idade das trevas”.
Em decorrência da arbitrariedade política e da mobilização fanática, movimentos como os paulicianos, os bogomilos, os patarinos e os cátaros foram sistematicamente perseguidos, entre os anos 717 e 1244, e aniquilados.
É surpreendente que, a cada nova onda de violência, ainda se ouvisse o antigo brado contra os “maniqueístas”, o grito de medo da aliança secular entre Igreja e Estado, que temiam perder seu poder e influência.
A Igreja gnóstica universal. Esse espetáculo foi presenciado pela humanidade repetidas vezes. No século II, Marcião fundou uma igreja gnóstica universal, que pregava o conhecimento das duas ordens de natureza.
Dezenas de milhares de pequenas igrejas foram destruídas na tentativa de apagar qualquer lembrança da vida original. A seguir, foi a vez de Mani, o apóstolo persa do Mestre Jesus, o Cristo.
Entre os séculos III e VI, seus discípulos se disseminaram por grande parte da Europa, da Ásia e até mesmo da China. Eles também foram exterminados.
Desde então, todos os grupos heréticos são chamados de maniqueístas.
As relações entre Mani e sua Igreja de Luz e os bogomilos são comprovadas por dois fatos históricos: os escritos gnósticos remanescentes, que foram preservados até os dias de hoje, e as tradições vivas, certamente malvistas pela Igreja oficial, que resistiram à queda do império greco-bizantino.
Os messalianos, por exemplo, davam grande valor à iniciação e ao preceito de uma vida pura.
Na melhor tradição gnóstica, eles se denominavam “portadores do Espírito” ou pneumatistas.
Outra tradição viva foi a preservada pelos discípulos de Paulo de Samósata, que se tornaram conhecidos como paulicianos. Paulo de Samósata ensinava que todos os seres humanos possuem o mesmo princípio divino em comum, e que homens e mulheres devem desempenhar papéis de igual importância tanto nos serviços religiosos como na sociedade.
As marcas deixadas às margens do tempo não são de leitura fácil.
Muitas das que não foram entalhadas na pedra desapareceram para sempre. Observamos, com
nosso olhar contemporâneo, a difícil convivência entre povos antigos que nos deixaram testemunhos escassos e de difícil interpretação.
Nossa compreensão da História é limitada por nosso estado de consciência atual, pelas normas em geral hoje aceitas, pelos juízos de valor, regras de comportamento e tabus.
O cristianismo original traz, a cada época, um ensinamento vivo e atual, uma filosofia que dá testemunho da luz e pode ajudar os que buscam a verdade a encontrar o caminho de retorno à origem divina.
É importante salientar que nenhuma perseguição religiosa jamais impediu que esses ensinamentos voltassem a se manifestar.
Eles renascem através dos tempos, pois emanam da profunda intuição e sensibilidade dos que se
predispõem a recebê-los.
Para tanto, o conhecimento histórico é irrelevante.
Os vestígios desses “ensinamentos da Luz” encontrados na areia podem nos revigorar.
Eles fortalecem nossa ligação com os inúmeros homens e mulheres que nos precederam.
Por mais triste que seja sua história, sentimos alegria e esperança quando reconhecemos que o mundo divino não nos abandona, que sempre renova seu chamado, e que várias Tradições gnósticas e muitos indivíduos, já responderam a esse chamado.
Assim surgem novas oportunidades para os que buscam na religião uma via de libertação.
Os gnósticos ensinam, então, que todo indivíduo possui em si uma centelha de consciência divina, uma centelha do passível de ser inflamada, o que lhe permitirá reintegrar a origem.
Os gnósticos fundam escolas espirituais em um novo estilo onde os buscadores encontram um
sustentáculo na compreensão do caminho que leva à vida original, caminho esse descrito pela sabedoria universal em particular no Novo Testamento.
A Bulgária foi a porta por onde as doutrinas gnósticas entraram na Europa. Elas proliferaram durante séculos nos Bálcãs, porém a memória coletiva dos europeus não as conservou muito bem por várias razões.Apenas um pequeno número de pessoas se interessou de fato.
Agrupamentos conhecidos pelo nome genérico de bogomilos, do século IX ao século XIV, propagaram, portanto, um cristianismo diferente do cristianismo da Igreja romana, e que revelava a força libertadora da Gnosis às pessoas de todas as camadas sociais.
A antiga corrente do maniqueísmo, que se expandira no Oriente até a China e no Ocidente
até a Espanha, havia engendrado vários movimentos, dentre eles o dos bogomilos.
Nascido em solo búlgaro medieval, o bogomilismo trazia consigo todas as características de
sua época.
Não seguia nem imitava qualquer orientação conhecida até então. Nele se manifesta uma forte inspiração do cristianismo primitivo.
Em geral, as diferentes expressões do maniqueísmo medieval nos Bálcãs se esforçavam para
promover o impulso de Cristo puro e livre de todo dogmatismo.
Os bogomilos, bastante inclinados à liberdade, opunham-se às instituições feudais que
exploravam o povo.
Sua concepção espiritual e seu modo de vida, em total contradição com as autoridades religiosas e administrativas de seu tempo, exerciam grande força de atração sobre as classes médias balcânicas.
Mesmo em épocas de perseguição eles davam continuidade a suas atividades.
Seus dirigentes, em dado momento, entraram em contato com os cátaros da Occitânia, cuja influência se estendia sobre grande parte do norte da Itália, da Suíça e do norte da Espanha.
Essas correntes eram ramos da mesma árvore gnóstica, não idênticos, porém enraizados no mesmo solo.
O archote da Gnosis não cessa de ser levado adiante, seu fogo arde sem descanso ao longo dos
séculos. Ora ele arde com força, ora brilha secretamente, dependendo das circunstâncias. Muitos seres trilham o caminho e outros apenas têm como tarefa indicar a direção.
Seus nomes desaparecem nas areias da história, mas são inscritos de forma indelével no livro da Fraternidade da Luz, na corrente de todas as fraternidades que desde tempos imemoriais vêm realizando sua obra libertadora.
Em nossa época, os seres humanos se relacionam cada vez mais entre si, tanto interior como exteriormente. Muitos sabem, ou supõem de maneira inconsciente em seu íntimo, que a humanidade está decaída e que cada um deve encontrar e seguir o caminho da libertação. Eles se esforçam, pois, para realizar essa libertação em sua condição social e pessoal e, desse modo, obter uma ligação vivente com o divino.
“Sob o reino do [...] tsar Pedro (século X), um pope chamado Bogomilo
[...] foi o primeiro a pregar a doutrina herética na Bulgária [...]
Esta citação foi extraída de um tratado contra Bogomilo. O pouco que conhecemos dele provém quase que apenas dos escritos de seus inimigos. De acordo com um velho documento búlgaro, ele foi anatematizado duas ou três vezes, o que demonstra o quanto era temido pela Igreja oficial e a amplitude de sua influência: um movimento gnóstico inteiro levava seu nome.
Pelo fato de figurar na lista dos autores interditados, ele deve também ter propagado seu ensinamento por escrito. Ele é apresentado como um homem inteligente, muito audaz, que exercia grande autoridade sobre seus semelhantes.
Ele começou como padre ortodoxo e esteve muito próximo do povo, mas era totalmente contrário ao cristianismo oficial, em que rituais pretensamente sublimes representavam um grande papel e davam uma importância preponderante à forma.
Esse tipo de cristianismo estava muito distante da mensagem original: a necessidade de
adquirir uma fé viva para que, em todos os aspectos de sua existência, o ser humano ligue sua alma ao Espírito do reino dos céus.
Bogomilo não foi o único a perseguir esse objetivo. Ele não foi o fundador da assim chamada
Igreja dragoviciana, porém consideramo-lo o representante das doutrinas dessa Igreja, de alguns ensinamentos paulicianos e das concepções maniqueístas.
Ele juntou esses ensinamentos, que se tornaram conhecidos naquele tempo como Igreja búlgara e Igreja dragoviciana. Devemos ver isso na forma de duas correntes dirigentes no interior de uma grande rede de fraternidades isoladas que, partindo mais ou menos do mesmo ponto, procuravam viver de acordo com os mesmos princípios.
Disso, Bogomilo era o coração irradiante.
Assim como muitos outros, Bogomilo condenava a arbitrariedade da Igreja e do Estado e seu
sistema de opressão. Ele compartilhava as idéias de múltiplos grupos gnósticos que atuavam no sul dos Bálcãs, em particular a idéia da existência de dois campos de vida separados, o que formava o próprio coração de sua crença.
Ele considerava seus adeptos “theotokos”, ou seja, aqueles que devem “engendrar Deus”.
Ele chegou a formular o direito à liberdade e à salvação das almas injustiçadas e dos oprimidos que não tinham a possibilidade de se expressar.
Ele defendia a idéia de que existem dois princípios no ser humano, um terrestre e um celeste, e que o princípio celeste deveria sair vitorioso sobre o princípio terrestre. Lemos em um texto bogomilo:
O corpo que trazemos é uma criação das trevas, a alma que nele habita é o primeiro homem e
o germe da luz. O primeiro homem foi vitorioso no país das trevas, e também em nossos dias ele triunfará no seu corpo mortal. O Espírito vivente, que outrora irradiou sobre o primeiro homem, é, ainda hoje, nosso consolador, o “consolamentum”.
Não sabemos se Bogomilo caiu nas mãos de seus perseguidores ou se pôde continuar na
clandestinidade. Todos os seus testemunhos escritos foram manifestamente destruídos, porém não se conseguiu evitar as influências de seu ensinamento na literatura de seu tempo.
Os bogomilos mesclaram o essencial de sua fé na forma de mitos e de lendas com a literatura búlgara. Exemplos dessa fé podem ser encontrados nos contos, nos cânticos e nos poemas.
Na Bulgária em como em muitas partes da Europa e da Ásia, a sabedoria gnóstica floresceu
outra vez.
Esses movimentos desencadearam uma rebelião na Idade Média e obrigaram a Igreja da época a mostrar sua verdadeira face: uma instituição onde a religião estava ligada às autoridades e cuja reação contra os movimentos gnósticos de então constituiu um dos capítulos mais sombrios de sua história.
A luz sempre triunfará!
Os representantes da Igreja oficial qualificaram de dualista a doutrina pregada por Bogomilo. Os dogmáticos esforçavam-se para provar que esses pretensos heréticos tinham parte com as trevas em oposição ao reino de Deus.
Ora, a mensagem de todo sistema qualificado de gnóstico é que a luz triunfa sobre as trevas.
Contrário às várias insinuações, Bogomilo e seus numerosos partidários ensinavam que existia
apenas um princípio divino único, e que o dualismo apenas aparecera quando Satanael ou Demiurgo*, decidiu, contra o princípio divino original, criar seu próprio mundo, uma terra e uma humanidade, tornando-se assim o princípio mesmo do mal.
Trata-se, portanto, de um dualismo temporário, pois Satã será vencido pela luz e seu mundo desaparecerá.
O fato é que, na sombria dualidade, a unidade da luz é rompida, dividida em dois pólos opostos.
Isso não ocorreu apenas num passado longínquo, porém acontece diariamente e sempre.
A lei da dualidade, a dialética, nos acua e não cessa de nos importunar no espaço e no tempo até o momento em que acabamos por compreender que somos seus prisioneiros e que devemos nos libertar dela.
É preciso que a luz interior oculta, na qual reconhecemos a verdade, ponha-se a brilhar em nós de tal maneira que possamos rejeitar a ilusão da dualidade. Eis as palavras de uma antiga prece bogomila:
"Purifica-me, meu Deus,purifica-me no interior e no exterior.
Purifica corpo, alma e espírito, para que os germes da luz cresçam em mim e me
transformem num archote.
Transforma-me em flama que transmuda em luz tudo em mim e ao meu redor."
Platão utiliza a expressão Demiurgo em Timeu para designar o artesão que, reunindo os elementos do caos, modelou os aspectos do cosmo sobre os modelos das formas eternas e engendrou todas as coisas materiais do mundo, inclusive o corpo humano.
Ele não é o criador de tudo “a partir do nada”, porém o arquiteto que deu e adornou a forma do Universo.
Platão considera que o Demiurgo é a personificação da razão ativa, expressão retomada pelos gnósticos que, em sua visão do mundo dualista, fazem do Demiurgo o símbolo das forças não-divinas e o responsável pela criação do mundo material sempre movente e inconstante, ao lado da divindade só bem, “o estrangeiro suave”.
O livro secreto dos bogomilos é um diálogo entre Mestre Jesus, o Cristo e João, o “discípulo bem-amado”.
Os membros da Inquisição, que jamais viram essa obra, deram-lhe o nome de Livro secreto.
Apenas os perfecti o possuíam. Os especialistas o conhecem sob o nome de O livro de São João ou Pseudo-evangelho, do qual existem duas traduções em latim, datando a mais antiga do século XII. É muito provável que essa obra tenha sido escrita na Bulgária.