segunda-feira, 21 de abril de 2014

Cátaros e Catarismo Cristianismo Primitivo


Primórdios ocultos do catarismo!Freqüentemente são agrupados sob o nome de gnósticos grupos muito diferentes, até mesmo opostos, para ter um motivo para combatê-los, exterminá-los, e sobretudo caluniá-los. Os Essênios formaram uma comunidade gnóstica de judeus piedosos que claramente se distanciaram de seus compatriotas.
Eles se diferenciavam pela pureza de seu caminho e de sua vida.
Eles se distinguiam pela completa pureza de seus costumes.
Eles aprovavam o casamento como forma de conservação do gênero humano, mas não se guiavam pelas volúpias da carne.
Condenavam os juramentos, a propriedade de bens, a alimentação carnívora e abominavam a mentira.
Eles viviam em perfeito desapego das paixões e conflitos humanos ordinários e dos bens terrenos.


Eram chamados também de Terapeutas, porque curavam os doentes.
Esta comunidade de “puros” se apresentava como a guardiã do verdadeiro sacerdócio hebraico.
Ela preparava o nascimento da nova era de luz: a era cristã.
Enviados e guiados da fraternidade dos essênios, dos “mestres da justiça”, eles representavam, por intermédio de suas vidas e atitudes, a vinda de um “novo homem”, do qual Mestre Jesus, o Cristo era o protótipo.


Para os essênios, não era possível se aproximar dos mistérios divinos senão por uma vida no Espírito, pelo amor a Deus e pelo respeito aos homens e à vida. Devido a seu modo de viver como os primeiros cristãos, os Pais da Igreja os consideram como cristãos apostólicos.A Escola de Alexandria deve ser considerada como um período de fusão das principais filosofias da Antigüidade. Um gigantesco cadinho em que as religiões e filosofias do mundo vieram se mesclar: judaísmo, platonismo, cristianismo, gnosis cristã e egípcia.


O helenismo aí revela a antiga sabedoria dos Mistérios, retirada da fonte original comum: o Egito. Ali se pode ver o magnífico paralelismo entre Fílon e Platão. Ammonius Saccas, fundador da doutrina neo-platônica, aí se tornou uma luz: pagãos e cristãos, que admirável, usavam seu nome.


Clemente de Alexandria, Orígenes e cristãos encontravam-se com pagãos como Plotino e Porfírio. Os gnósticos se ocupavam ativamente em desembaraçar a filosofia, a ciência sagrada. Eles abordavam de maneira audaciosa os maiores problemas (a existência do mal, o tempo e a eternidade, a corrupção universal e o caminho da perfeição, o homem e Deus) e pretendiam resolvê-los graças à Gnosis, a revelação interior de Deus.Isso explica por que a maioria dos padres gregos, nutridos pela Gnosis alexandrina, guardaram essa impressão de alta espiritualidade: Clemente de Alexandria, João Crisóstomo, Orígenes.
Um século depois de Agostinho, que fora maniqueu antes de ser cristão católico , Atanásio, bispo de Alexandria, professava uma doutrina da alma digna de um verdadeiro gnóstico. Tertuliano teria sido um dos primeiros fiéis da Igreja dos “puros” (catharoï); como Montanius, fundador da primeira Igreja cátara em 140; como Novat, bispo cátaro em Cartago; como Novatiano, que se tornou papa, e permaneceu papa (em 250) durante vinte anos!
Foi nesse verdadeiro cadinho espiritual alexandrino que se confrontaram a sabedoria de Hermes, o essenismo e o neoplatonismo com o cristianismo, em cujo espírito o catarismo se desenvolveu.
Desde a aurora dos tempos, os que transmitiram a sabedoria, a Gnosis, incitaram a humanidade a descobrir que um caminho de regresso à perfeição original existe e que um processo imenso e misterioso leva à verdadeira vida, a vida do homem-alma-espírito.Em verdade, de Rama, o arquidruida, até Hermes Trismegisto, de Hermes a Pitágoras, de Pitágoras a Virgílio, de Virgílio a Dante, é a mesma corrente espiritual e secular que gira. Celtismo e pitagorismo são irmãos. Druidismo e cristianismo se completam, e não é de modo algum por acaso! A essência da doutrina dos druidas é cristã em seus fundamentos puros, embora ela tenha sido elaborada antes de Cristo.

Índia, Egito, Palestina, Grécia e Alexandria;Pitágoras, Platão, Jesus; Dante, Gnosis islâmica;para finalmente aparecer na Europa com os cátaros, os templários, os rosacruzes...Uma longa corrente áurea, uma série de elos conectados uns aos outros.Mas é sempre o mesmo pensamento no trabalho, um fundamento espiritual idêntico que reencontramos sob símbolos diferentes: a Gnosis, o templo do Espírito, a Fraternidade Universal.O Mistério envolve todas as origens: a do mundo, a do cristianismo, a do homem.Cristo, ele próprio, trabalha em uma “nuvem luminosa”; e quando ele enraíza profundamente o trono divino, vemos surgir através do matagal confuso três ramos-raiz:



O ramo judeu e tradicional de São Pedro;
O ramo grego de São Paulo;
O ramo oriental, platônico e místico de São João.

A qual dessas três ramificações primitivas se ligam os cátaros, o catarismo dos Pireneus franceses, com o maniqueísmo aquitano, os templários e mais tarde os rosacruzes?Evidentemente à última, a de João, filho de Zebedeu, o discípulo bem amado do Senhor!Moisés desceu das nuvens trovejantes do Sinai portando as Tábuas da Lei. Cristo, ascendendo em sua glória, deixa ao mundo apenas seu Verbo. O Verbo se condensa em um evangelho primordial. Esse arqui-evangelho hebreu é dividido em quatro evangelhos gregos que se fragmentam em uma multiplicidade de lendas evangélicas escritas em idiomas orientais. Cada nação tem sua própria biografia de Jesus, cada grupo de fiéis modifica a imagem de Cristo de acordo com suas próprias idéias:

Para os judeus, ele é “filho de Abraão”;

Para os gregos, ele é “Filho do Homem” e suas origens remontam a Adão;

Os orientais ignoram toda sua genealogia humana e vêm nele apenas o Verbo, Filho de Deus.Cristo também tem sua mitologia. A igreja se arroga o direito de tornar proscrita essa diversidade de lendas apócrifas e considera verdadeiros apenas os quatro evangelhos: o homem, o leão, o touro e a águia. O concílio de Nicéia os declara “os únicos ortodoxos”. Mas a fonte dos quatro rios, o exemplar único e original, o arqui-evangelho, desapareceu! Gregório de Naziance, bispo greco-asiático do século IV, patriarca de Constantinopla, dizia:

“Mateus foi escrito para os hebreus;

Marcos, para os romanos;


Lucas, para os helenos;

João, para todos os povos do Universo.

”No lugar do “Verbo”, os cátaros invocavam o Paracleto.

O evangelho de João se constituía quase inteiramente sua Bíblia, onde sua história principiava.O Apocalipse de Patmos abria sua epopéia. Seu espírito tinha o temperamento da águia, símbolo de “Boanerges” (filho do trovão). Pelo apóstolo João, o “amado do Salvador”, e pelo seu evangelho, os cátaros eram não somente da mais pura linhagem evangélica, mas ainda da mais alta origem ortodoxa. Entretanto, eles ultrapassaram esse poderoso impulso até o mais alto ideal cristão. O evangelho espiritual estava ligado ao sentido da mais alta realização: o homem-espírito.

Eles não eram apenas místicos, eram também gnósticos.Seu cristianismo era uma “gnose”, um “conhecimento” dos mistérios divinos e uma pregação. Seu chefe era o Verbo que ensina. Como o Deus Salvador de Platão, ele salvava pela verdade, não pela expiação ou martírio.A razão nunca pôde explicar a coexistência simultânea do infinito e do finito, de Deus e do mundo. Se o Espírito é o Ser, a matéria é o nada. Se o Espírito é o bem, a matéria é o mal, ou seja, o não-ser. Deus, sendo o Ser infinito, a carne é apenas uma sombra, o mundo uma aparência, o destino um drama trágico, fantasmagórico!Havia gnósticos judeus e gnósticos greco-sírios. A estes últimos estava ligado o catarismo da região dos Pireneus. Eles eram gregos orientais.Greco-hindu, o catarismo rejeitava o judaísmo, os livros hebreus, as violências de Moisés, os trovões de Jeová.“Deus é Amor”.

Ele se distingue claramente do maniqueísmo persa ao rejeitar o dualismo entre o Espírito e a matéria, seu mal eterno, seus resquícios do mazdeísmo. Zoroastro lhe era tão estranho quanto Moisés.Cristão, anterior ao cristianismo do Concílio de Nicéia, o catarismo não aceita os livros judeus, nem os evangelhos judaicos, nem os símbolos da Igreja imperial, nem as pompas pagãs da teocracia romana.Ele está ligado, sobretudo, a Montanius, a Marcion, os primeiros “cátaros” (140-199), a Novat, a Novatiano (o papa cátaro).

Gnóstico, ele se separa dos outros gnósticos deixando de lado os éons, os Abraxas, os diagramas, os números cabalísticos. Ele se separa do tronco cristianismo pelo ramo-raiz de São João e forma como um neo-cristianismo mediante a elevada idéia geradora do Paracleto.“Religião do Espírito” (Mani, manas, mens, designando o pensar superior, o Espírito).

É a religião de Hermes, o Mercúrio da cultura latina.Nos ensinamentos “herméticos”, a tônica é colocada no pensamento superior que é a alma divina: somente a alma, nascida no coração, se liga ao Espírito. Ela “conhece” Deus. Ela serve a Deus pela razão esclarecida. Somente o Espírito, manifestado na Alma, salva o ser humano.
Inspirado por Alexandria, esse movimento se diferencia do neoplatonismo por rejeitar todas as mitologias e tradições órficas, homéricas e olímpicas, para se unir, por intermédio de João, a Cristo.O Evangelho de João é para ele, “o livro levado pelo anjo ao Zênite do Céu”.Ele se destaca de Francisco de Assis, bem como de Joaquim de Flore, pelos seus dogmas alexandrinos e por seu insuperável horror a Roma, dos horrendos processos da Inquisição, da morte dos hereges proclamada por Leão I em 447, da vergonhosa condenação do livre pensamento pelos grandes teólogos católicos, dos quais o modelo, sem sombra de dúvida, foi fornecido por São Tomás de Aquino.

O que eles adoravam era “Mani”, ou o Espírito Santo. Maneísmo não é sinônimo de maniqueísmo. Que trágico erro tem causado esta confusão propositada! É todo o drama cátaro!
A Occitânia ( sul da França) foi a terra do reencontro predestinada da corrente cristã de origem bogomila, introduzida no ocidente pelos mercadores “boulgres” ou búlgaros (dentre os quais Paulo, o Armênio) no século X, com a corrente pirenaica vinda da Espanha. A corrente espanhola surgiu na costa oriental do Mediterrâneo durante o século I. Ela se fortificou em Alexandria em contato com o neoplatonismo de Plotino e Orígenes.Então, essa corrente espiritual de “Mani” ganha a África do norte com Marcos de Menfis e Fausto de Milevo (ao qual se opõe Agostinho, que renegou os maníqueus, do qual não pôde penetrar os aspectos interiores).O maneísmo, em sua própria essência, é anterior ao espírito dogmático do Concílio de Nicéia.“Pode-se considerar o maneísmo aquitano, ou occitano (denominado mais tarde albigense), como uma evolução nova do cristianismo e como seu desabrochar definitivo, sua sutilização suprema e celestial.”
“Se o judaísmo é a religião do Pai (de Jeová), se o cristianismo é a religião do Filho (de Jesus), então o catarismo é a religião do Espírito (do Paracleto).Como o cristianismo se distingue do judaísmo pelo Verbo, o catarismo se distingue do cristianismo eclesiástico pelo Paracleto.”Segundo o cristianismo das igrejas, o gênero humano foi salvo pelo Filho. Acreditar nele traz a salvação.

No catarismo, a salvação provém do Paracleto, do Consolador. É ele, o Espírito Santo, que desperta a alma de seu sono ébrio na matéria e lhe dá o anseio pelo absoluto, por Deus.Ouvir a Palavra é, então, saber-se portador da centelha-de-luz do Deus verdadeiro e fazê-la crescer como a força do Filho.O catarismo, que reivindicava como sua Mãe a igreja cristã, ignorava a sinagoga judaica, que por sua vez rejeitava a Igreja cristã como sendo muito intelectual. A Igreja cristã, que se tornou católica, rejeitava a Igreja cátara como sendo muito espiritual, muito idealista...
De tal forma que a Igreja cátara, então legítima pretendente ao título de cristã, deveria, após esse desenvolvimento, sustentar o nome de “paracletiana”.
Ela é a “Igreja da Consolação”, pura e purificadora, santa e santificante, consoladora e consolada no exílio do mundo.Ela é a Consolação do Universo: ela desdenha o mundo, abomina o sangue, extingue o inferno, converte Satã, proclama a salvação universal. “Por essa sólida evolução, o catarismo pode ser considerado uma nova religião que escapou da Igreja como uma borboleta da crisálida. Essa transformação, que foi seu brilhante infortúnio no passado, deverá ser no futuro seu glorioso epitáfio.”Os primeiros “Amigos de Deus” formaram uma fraternidade igualitária, professando o sacerdócio universal. Mais tarde, as perseguições levaram os cátaros a se organizar; três degraus se formaram na igualdade primitiva: o noviciado, a perfeição e o sacerdócio. O diaconato fora elevado a episcopado e do episcopado desabrocharia o patriarcado.
A religião do Espírito consolador e purificador, tão antiga quanto a dor e o mal, que queria curar as feridas, remonta aos primeiros dias do mundo.Antes de Cristo, ela projetou seus raios sobre os brâmanes da Índia, os magos da Pérsia, os essênios do judaísmo, os gregos, sobre Pitágoras e Platão.Depois de Cristo, entre todos os gnósticos, está mais voltada ao pensamento de Platão e à moral de Pitágoras, conservando entretanto, sua pura radiação primordial no Oriente: um raio celeste e uma lâmpada grega.Aí termina sua hierarquia que, daí por diante, conserva o monopólio do patriarcado. Essa aristocracia patriarcal jamais tomou o aspecto de uma monarquia teocrática. Ela não serviu, em momento algum, aos sonhos de Manes, que envolvia o mundo todo em seu projeto de teocracia universal.
O catarismo pireneu foi, em sua essência, espiritualista demais para personificar o Paracleto em um homem: seu papa era o Espírito; seu Vaticano, o céu! Nenhuma palavra velada na Bíblia, nenhuma escritura acorrentada no Templo.
Nenhum Deus cativo no tabernáculo.
Nenhum sacerdote carcereiro de Deus.
Nenhum papa zelador do céu e do inferno.
Nenhuma servidão ou morte do Espírito!

Deus salvou duas vezes o mundo do materialismo e da corrupção, pela imensa revolução da Gnosis: os místicos, os gnósticos, os solitários dos desertos, os grandes pensadores das cavernas. Ele soergueu os cátaros, os leonistas, os espiritualistas de Narbone e da Calábria contra as crenças e dogmas não racionais.Essas eram as igrejas proscritas de São João e São Paulo.Eram os templários, os cátaros e mais tarde os rosacruzes, irmãos da Fraternidade Universal, que elevariam o templo do Espírito: a grande ‘Mani da Aquitânia. Verdadeiros pioneiros em seu tempo da Igreja do Espírito, que persistiam incansáveis em sua tarefa de “pescadores de homens”, abrindo desde a base o caminho do renascimento do Espírito, freqüentemente proscritos, perseguidos e traídos, mas jamais desencorajados.Orígenes, Marcos de Mênfis...


“Temos ainda, e após o ano 140 d.C., outros líderes espirituais: o grande Orígenes, Marcos de Mênfis (desde o ano 300), Prisciliano de Ávila, Félix de Urgel, Paulo da Armênia, Erigène da Irlanda, Lisois de Orleans. Também Nicetas de Constantinopla, que veio organizar o catarismo na região dos Pireneus em face das perseguições que ocorriam.”


O catarismo chegou ao Ocidente sob sua forma pura, com Marcos de Mênfis antes do ano 350. Seu aluno favorito, Prisciliano de Ávila, o espalhou por toda a Espanha, a Gália, a Inglaterra, a Bélgica, a Suíça, a Holanda, a Alemanha, até 382. Essa é data em que ele foi decapitado em Treves (Alemanha) por instigação de bispos católicos. Ele foi o primeiro mártir herético.Seus grandes discípulos espanhóis Elipand, arcebispo de Toledo, e Félix, bispo de Urgel (Andorra e Sabartez) que reencontramos nos caminhos que levaram Prisciliano (de 788 a 800) a Narbonne, a Ratisbonne, até Frankfurt, até Aix-la-Chapelle, continuaram sua pregação.Mais tarde, Joaquim de Flore (1132 - 1202) produziria seu “Evangelho Espiritual” que teve igualmente uma profunda influência sobre a evolução do pensamento religioso.Todos vivificaram uma corrente espiritual na qual se inspiraria o catarismo

BOGOMILOS CRISTIANISMO ORIGINAL


“Quando surgirá a aurora?
O nascimento do dia em que a humanidade haverá de se voltar para a luz
interior, a luz da verdade? Quando tiver vontade...?
Mas, enquanto espero, quero me esforçar como se esse dia já tivesse chegado.”

Zoroastro

"A tolerância é uma virtude mais social do que religiosa”, afirma Steven Runciman, especialista em história dos bogomilos.
“Uma atitude tolerante em relação às crenças alheias contribui sem dúvida para uma sociedade harmoniosa; porém essa atitude é impossível para os que possuem uma forte convicção religiosa.
Porque quando estamos convictos de ter encontrado a chave e o sentido supremo da vida, não
conseguimos admitir que nossos irmãos continuem tateando às cegas na escuridão.
Podemos reconhecer que, mesmo sem essa chave, eles possam conduzir suas vidas de maneira virtuosa e admirável, mas seu fardo será, a nosso ver, desnecessariamente pesado; é nosso dever ajudá-los a encontrar o verdadeiro caminho e mostrar-lhes a luz que os libertará.
As opiniões divergem quanto à natureza da ajuda que deve ser prestada: se a persuasão pacífica e um exemplo luminoso, ou a espada e o auto-de-fé.”
O autor conclui que “nenhuma pessoa religiosa de fato aceita abandonar um descrente à própria sorte”.
Poderíamos acrescentar que, quando outros interesses como poder, prestígio e riqueza começam a desempenhar seu papel, essa convicção religiosa se torna ilegítima.
Então, muitos indivíduos e até mesmo populações inteiras são sacrificados, territórios são devastados e reduzidos a cinzas, cidades são arrasadas.
Esse foi o pano de fundo do drama dos bogomilos, denominação coletiva de vários grupos, bastante diferentes entre si, que tinham em comum a aversão por um sistema religioso centralizador que sufocava sua vivência individual da espiritualidade e aniquilava sua liberdade pessoal.
O período histórico a que nos referimos é designado com razão como “a idade das trevas”.
Em decorrência da arbitrariedade política e da mobilização fanática, movimentos como os paulicianos, os bogomilos, os patarinos e os cátaros foram sistematicamente perseguidos, entre os anos 717 e 1244, e aniquilados.
É surpreendente que, a cada nova onda de violência, ainda se ouvisse o antigo brado contra os “maniqueístas”, o grito de medo da aliança secular entre Igreja e Estado, que temiam perder seu poder e influência.
A Igreja gnóstica universal. Esse espetáculo foi presenciado pela humanidade repetidas vezes. No século II, Marcião fundou uma igreja gnóstica universal, que pregava o conhecimento das duas ordens de natureza.
Dezenas de milhares de pequenas igrejas foram destruídas na tentativa de apagar qualquer lembrança da vida original. A seguir, foi a vez de Mani, o apóstolo persa do Mestre Jesus, o Cristo.
Entre os séculos III e VI, seus discípulos se disseminaram por grande parte da Europa, da Ásia e até mesmo da China. Eles também foram exterminados.
Desde então, todos os grupos heréticos são chamados de maniqueístas.
As relações entre Mani e sua Igreja de Luz e os bogomilos são comprovadas por dois fatos históricos: os escritos gnósticos remanescentes, que foram preservados até os dias de hoje, e as tradições vivas, certamente malvistas pela Igreja oficial, que resistiram à queda do império greco-bizantino.
Os messalianos, por exemplo, davam grande valor à iniciação e ao preceito de uma vida pura.
Na melhor tradição gnóstica, eles se denominavam “portadores do Espírito” ou pneumatistas.
Outra tradição viva foi a preservada pelos discípulos de Paulo de Samósata, que se tornaram conhecidos como paulicianos. Paulo de Samósata ensinava que todos os seres humanos possuem o mesmo princípio divino em comum, e que homens e mulheres devem desempenhar papéis de igual importância tanto nos serviços religiosos como na sociedade.
As marcas deixadas às margens do tempo não são de leitura fácil.
Muitas das que não foram entalhadas na pedra desapareceram para sempre. Observamos, com
nosso olhar contemporâneo, a difícil convivência entre povos antigos que nos deixaram testemunhos escassos e de difícil interpretação.
Nossa compreensão da História é limitada por nosso estado de consciência atual, pelas normas em geral hoje aceitas, pelos juízos de valor, regras de comportamento e tabus.
O cristianismo original traz, a cada época, um ensinamento vivo e atual, uma filosofia que dá testemunho da luz e pode ajudar os que buscam a verdade a encontrar o caminho de retorno à origem divina.
É importante salientar que nenhuma perseguição religiosa jamais impediu que esses ensinamentos voltassem a se manifestar.
Eles renascem através dos tempos, pois emanam da profunda intuição e sensibilidade dos que se
predispõem a recebê-los.
Para tanto, o conhecimento histórico é irrelevante.
Os vestígios desses “ensinamentos da Luz” encontrados na areia podem nos revigorar.
Eles fortalecem nossa ligação com os inúmeros homens e mulheres que nos precederam.
Por mais triste que seja sua história, sentimos alegria e esperança quando reconhecemos que o mundo divino não nos abandona, que sempre renova seu chamado, e que várias Tradições gnósticas e muitos indivíduos, já responderam a esse chamado.
Assim surgem novas oportunidades para os que buscam na religião uma via de libertação.
Os gnósticos ensinam, então, que todo indivíduo possui em si uma centelha de consciência divina, uma centelha do passível de ser inflamada, o que lhe permitirá reintegrar a origem.
Os gnósticos fundam escolas espirituais em um novo estilo onde os buscadores encontram um
sustentáculo na compreensão do caminho que leva à vida original, caminho esse descrito pela sabedoria universal em particular no Novo Testamento.
A Bulgária foi a porta por onde as doutrinas gnósticas entraram na Europa. Elas proliferaram durante séculos nos Bálcãs, porém a memória coletiva dos europeus não as conservou muito bem por várias razões.Apenas um pequeno número de pessoas se interessou de fato.
Agrupamentos conhecidos pelo nome genérico de bogomilos, do século IX ao século XIV, propagaram, portanto, um cristianismo diferente do cristianismo da Igreja romana, e que revelava a força libertadora da Gnosis às pessoas de todas as camadas sociais.
A antiga corrente do maniqueísmo, que se expandira no Oriente até a China e no Ocidente
até a Espanha, havia engendrado vários movimentos, dentre eles o dos bogomilos.
Nascido em solo búlgaro medieval, o bogomilismo trazia consigo todas as características de
sua época.
Não seguia nem imitava qualquer orientação conhecida até então. Nele se manifesta uma forte inspiração do cristianismo primitivo.
Em geral, as diferentes expressões do maniqueísmo medieval nos Bálcãs se esforçavam para
promover o impulso de Cristo puro e livre de todo dogmatismo.
Os bogomilos, bastante inclinados à liberdade, opunham-se às instituições feudais que
exploravam o povo.
Sua concepção espiritual e seu modo de vida, em total contradição com as autoridades religiosas e administrativas de seu tempo, exerciam grande força de atração sobre as classes médias balcânicas.
Mesmo em épocas de perseguição eles davam continuidade a suas atividades.
Seus dirigentes, em dado momento, entraram em contato com os cátaros da Occitânia, cuja influência se estendia sobre grande parte do norte da Itália, da Suíça e do norte da Espanha.
Essas correntes eram ramos da mesma árvore gnóstica, não idênticos, porém enraizados no mesmo solo.
O archote da Gnosis não cessa de ser levado adiante, seu fogo arde sem descanso ao longo dos
séculos. Ora ele arde com força, ora brilha secretamente, dependendo das circunstâncias. Muitos seres trilham o caminho e outros apenas têm como tarefa indicar a direção.
Seus nomes desaparecem nas areias da história, mas são inscritos de forma indelével no livro da Fraternidade da Luz, na corrente de todas as fraternidades que desde tempos imemoriais vêm realizando sua obra libertadora.
Em nossa época, os seres humanos se relacionam cada vez mais entre si, tanto interior como exteriormente. Muitos sabem, ou supõem de maneira inconsciente em seu íntimo, que a humanidade está decaída e que cada um deve encontrar e seguir o caminho da libertação. Eles se esforçam, pois, para realizar essa libertação em sua condição social e pessoal e, desse modo, obter uma ligação vivente com o divino.
“Sob o reino do [...] tsar Pedro (século X), um pope chamado Bogomilo
[...] foi o primeiro a pregar a doutrina herética na Bulgária [...]

Esta citação foi extraída de um tratado contra Bogomilo. O pouco que conhecemos dele provém quase que apenas dos escritos de seus inimigos. De acordo com um velho documento búlgaro, ele foi anatematizado duas ou três vezes, o que demonstra o quanto era temido pela Igreja oficial e a amplitude de sua influência: um movimento gnóstico inteiro levava seu nome.
Pelo fato de figurar na lista dos autores interditados, ele deve também ter propagado seu ensinamento por escrito. Ele é apresentado como um homem inteligente, muito audaz, que exercia grande autoridade sobre seus semelhantes.
Ele começou como padre ortodoxo e esteve muito próximo do povo, mas era totalmente contrário ao cristianismo oficial, em que rituais pretensamente sublimes representavam um grande papel e davam uma importância preponderante à forma.
Esse tipo de cristianismo estava muito distante da mensagem original: a necessidade de
adquirir uma fé viva para que, em todos os aspectos de sua existência, o ser humano ligue sua alma ao Espírito do reino dos céus.
Bogomilo não foi o único a perseguir esse objetivo. Ele não foi o fundador da assim chamada
Igreja dragoviciana, porém consideramo-lo o representante das doutrinas dessa Igreja, de alguns ensinamentos paulicianos e das concepções maniqueístas.
Ele juntou esses ensinamentos, que se tornaram conhecidos naquele tempo como Igreja búlgara e Igreja dragoviciana. Devemos ver isso na forma de duas correntes dirigentes no interior de uma grande rede de fraternidades isoladas que, partindo mais ou menos do mesmo ponto, procuravam viver de acordo com os mesmos princípios.
Disso, Bogomilo era o coração irradiante.
Assim como muitos outros, Bogomilo condenava a arbitrariedade da Igreja e do Estado e seu
sistema de opressão. Ele compartilhava as idéias de múltiplos grupos gnósticos que atuavam no sul dos Bálcãs, em particular a idéia da existência de dois campos de vida separados, o que formava o próprio coração de sua crença.
Ele considerava seus adeptos “theotokos”, ou seja, aqueles que devem “engendrar Deus”.
Ele chegou a formular o direito à liberdade e à salvação das almas injustiçadas e dos oprimidos que não tinham a possibilidade de se expressar.
Ele defendia a idéia de que existem dois princípios no ser humano, um terrestre e um celeste, e que o princípio celeste deveria sair vitorioso sobre o princípio terrestre. Lemos em um texto bogomilo:
O corpo que trazemos é uma criação das trevas, a alma que nele habita é o primeiro homem e
o germe da luz. O primeiro homem foi vitorioso no país das trevas, e também em nossos dias ele triunfará no seu corpo mortal. O Espírito vivente, que outrora irradiou sobre o primeiro homem, é, ainda hoje, nosso consolador, o “consolamentum”.
Não sabemos se Bogomilo caiu nas mãos de seus perseguidores ou se pôde continuar na
clandestinidade. Todos os seus testemunhos escritos foram manifestamente destruídos, porém não se conseguiu evitar as influências de seu ensinamento na literatura de seu tempo.
Os bogomilos mesclaram o essencial de sua fé na forma de mitos e de lendas com a literatura búlgara. Exemplos dessa fé podem ser encontrados nos contos, nos cânticos e nos poemas.
Na Bulgária em como em muitas partes da Europa e da Ásia, a sabedoria gnóstica floresceu
outra vez.
Esses movimentos desencadearam uma rebelião na Idade Média e obrigaram a Igreja da época a mostrar sua verdadeira face: uma instituição onde a religião estava ligada às autoridades e cuja reação contra os movimentos gnósticos de então constituiu um dos capítulos mais sombrios de sua história.
A luz sempre triunfará!
Os representantes da Igreja oficial qualificaram de dualista a doutrina pregada por Bogomilo. Os dogmáticos esforçavam-se para provar que esses pretensos heréticos tinham parte com as trevas em oposição ao reino de Deus.
Ora, a mensagem de todo sistema qualificado de gnóstico é que a luz triunfa sobre as trevas.
Contrário às várias insinuações, Bogomilo e seus numerosos partidários ensinavam que existia
apenas um princípio divino único, e que o dualismo apenas aparecera quando Satanael ou Demiurgo*, decidiu, contra o princípio divino original, criar seu próprio mundo, uma terra e uma humanidade, tornando-se assim o princípio mesmo do mal.
Trata-se, portanto, de um dualismo temporário, pois Satã será vencido pela luz e seu mundo desaparecerá.
O fato é que, na sombria dualidade, a unidade da luz é rompida, dividida em dois pólos opostos.
Isso não ocorreu apenas num passado longínquo, porém acontece diariamente e sempre.
A lei da dualidade, a dialética, nos acua e não cessa de nos importunar no espaço e no tempo até o momento em que acabamos por compreender que somos seus prisioneiros e que devemos nos libertar dela.
É preciso que a luz interior oculta, na qual reconhecemos a verdade, ponha-se a brilhar em nós de tal maneira que possamos rejeitar a ilusão da dualidade. Eis as palavras de uma antiga prece bogomila:
"Purifica-me, meu Deus,purifica-me no interior e no exterior.
Purifica corpo, alma e espírito, para que os germes da luz cresçam em mim e me
transformem num archote.
Transforma-me em flama que transmuda em luz tudo em mim e ao meu redor."

Platão utiliza a expressão Demiurgo em Timeu para designar o artesão que, reunindo os elementos do caos, modelou os aspectos do cosmo sobre os modelos das formas eternas e engendrou todas as coisas materiais do mundo, inclusive o corpo humano.
Ele não é o criador de tudo “a partir do nada”, porém o arquiteto que deu e adornou a forma do Universo.
Platão considera que o Demiurgo é a personificação da razão ativa, expressão retomada pelos gnósticos que, em sua visão do mundo dualista, fazem do Demiurgo o símbolo das forças não-divinas e o responsável pela criação do mundo material sempre movente e inconstante, ao lado da divindade só bem, “o estrangeiro suave”.
O livro secreto dos bogomilos é um diálogo entre Mestre Jesus, o Cristo e João, o “discípulo bem-amado”.
Os membros da Inquisição, que jamais viram essa obra, deram-lhe o nome de Livro secreto.
Apenas os perfecti o possuíam. Os especialistas o conhecem sob o nome de O livro de São João ou Pseudo-evangelho, do qual existem duas traduções em latim, datando a mais antiga do século XII. É muito provável que essa obra tenha sido escrita na Bulgária.

Sufi - O encontro do homem com o Espírito


O encontro do homem com o Espírito. Quando o homem sintoniza sua vida com o divino novamente desperto dentro dele, após um período de preparação se desenvolve uma nova consciência, ligada ao Espírito divino.
Essa bem-aventurada experiência é a da personagem chamada Chidr nos ensinamentos islâmicos/sufis.
Na narrativa de Sohravardi, quando a alma buscadora indaga ao sábio como se desfazer da “cota de malha da matéria”, como se desembaraçar dos laços da natureza terrestre, ele lhe responde: “Torna-te semelhante a Chidr”.
“Torna-te semelhante a Chidr”.
A alma percebe que a libertação dessa armadura de ferro é algo doloroso.
Consternada, ela faz a seguinte pergunta:
Mestre, o que é preciso fazer para aliviar essa miséria?
E o mestre responde: Vai à fonte da Vida, verte essa água sobre tua cabeça até que a cota de malha possa facilmente cair, protegendo-te ainda dos golpes de espada, pois essa água afina as malhas de modo que os golpes se tornam menos duros de suportar.
Mestre, onde se encontra a fonte da Vida?
Nos lugares escuros. Se tu queres ali chegar, calça os sapatos corretos e toma o caminho da esperança, até que chegues aos lugares escuros.
De que lado começa o caminho?
Não importa onde. Se o segues verdadeiramente, alcançarás teu objetivo.
O que é que caracteriza esses lugares escuros?
Tu te encontras neles sem o saberes. Quem quer que encete o caminho vê-se na escuridão, na qual já se encontrava, e percebe que jamais viu a luz. Esse é o primeiro passo do peregrino. A partir daí é possível avançar. Uma vez alcançado esse ponto, ele pode prosseguir.
Nosso destino é começar por aí?
Quem deseja encontrar a fonte da Vida vagueia desesperadamente na escuridão. Mas, no momento em que se torna digno, vê a luz. Quem descobre a fonte da Vida e nela se lava torna-se semelhante a Chidr.
Sohravardi menciona muito concisamente esse personagem misterioso associado à fonte da Vida tanto na tradição popular ortodoxa do Islã como no sufismo.
A ele é atribuída toda uma gama de qualificações que vão desde curador miraculoso até Ser espiritual supremo, e os muçulmanos o veneram em numerosos santuários onde ele é reputado como portador de felicidade.
Numerosos textos sufis descrevem o encontro com Chidr. Essa é uma experiência marcante que transforma completamente a vida e que freqüentemente gera um grande desgosto pelas coisas deste mundo.
Contudo, no que diz respeito a certos sufis, essa experiência essencial não parece modificar muito sua vida exterior. Há os que fazem de Chidr seu irmão, outros o consideram seu pai espiritual, e há os que o vêem na forma de um homem que os guia no caminho. Seria possível igualmente considerá-lo um ser espiritual microcósmico que acende a chama da nova consciência. No plano cósmico, ele é o guia espiritual da humanidade.
Nesse papel de guia interior, a tradição islâmica o apresenta como o servidor anônimo de Deus que guia Moisés. Segundo o Corão, Moisés deve passar por três tentações, e esse servidor que possui a sabedoria divina o adverte: “Tu não poderás ficar comigo até o fim. Como poderias suportar certas coisas se não as compreendes?” (Surata 18:65-82)
Ele leva Moisés consigo com a condição de que ele não faça nenhuma pergunta a respeito de suas ações. Como é evidente, ocorrem três coisas que levam Moisés a achar a maneira de agir de seu guia tão falsa e repreensível que ele não consegue manter sua palavra e acaba interrogando-o. Moisés, o homem da lei, não consegue explicar esses incidentes, falta-lhe ainda a percepção interior, pois ele os interpreta segundo a lógica, a moral e os critérios comuns.
Em seguimento a essa passagem do Corão, o sufismo faz uma distinção entre o “conhecimento chídrico” e o “conhecimento mosaico”.
Moisés representaria, neste caso, o “imame dos homens exteriores” e Chidr seria o possuidor do verdadeiro conhecimento, a gnosis (Ma´rifa em árabe).
Chidr é “o senhor dos mistérios”: “Sabe que Chidr é o reflexo do nome secreto de Deus e que seu lugar é o do Espírito”, declara o sufi persa Abd ar-Razzaq.
Para o sufismo, o conhecimento especial encarnado por Chidr, o conhecimento divino, é o saber “proveniente de Deus” ou “na presença de Deus”, descrito na 18ª surata.
O grande mestre Ibn al-Arabi afirma numa carta:
“Sabe, ó irmão, que, para nós, o conhecimento somente é perfeito quando vem diretamente de Deus, sem passar pela mediação da tradição ou de um xeique. Quem se ocupa apenas do que diz a ortodoxia em todos os seus detalhes deixará escapar a felicidade de seu Senhor. A pessoa que passa sua vida a perscrutar as tradições de maneira científica não encontrará a verdade. E se, ó irmão, tu segues o caminho acompanhado dos guias divinos, chegarás à contemplação de Deus e de Deus receberás o conhecimento de todas as coisas mediante justa inspiração, como o ensina Chidr, e isso sem nenhum esforço, nem dor, nem insônia.”
Chidr e Alexandre, o Grande. Nem sempre Chidr representa o guia espiritual, mas com freqüência ele também representa o próprio buscador.
No decorrer dos tempos, os autores muçulmanos ligaram-no às várias tradições antigas com o fito de mostrar a evolução que o faz tornar-se o “servidor imortal de Deus”.
Um mito bastante divulgado nas culturas grega e siríaca, conta que Alexandre, o Grande, buscava a fonte da Vida.
No século X, por exemplo, o teólogo Ibn Baboye relata o seguinte:
“Escreveu-se que ele era a fonte da Vida, e que os que bebessem dessa fonte não morreriam até que ouvissem o chamado para despertar, no dia da ressurreição. Quando, então, Alexandre partiu para sua busca, chegou a um local onde havia trezentas e sessenta fontes. Chidr era responsável pelo comando e Alexandre era, entre todos, o mais amado. Ele deu a Chidr e também a cada um de seus companheiros um peixe salgado, dizendo: ‘Mergulhai vosso peixe numa fonte, não importa em qual delas’. Chidr dirigiu-se para uma das fontes e mergulhou seu peixe, e eis que este reviveu e fugiu”.
Ao ver isso, Chidr soube que havia encontrado a fonte da água da Vida. Para os últimos autores sufis, a fonte da Vida é, sobretudo, a fonte da compreensão, e “esta se encontra oculta em vossa casa”, dizem eles.
Ali al Qari, indiretamente, liga o conhecimento à luz: “É dito: a água da Vida evoca o conhecimento, e a escuridão, a ignorância”.
Para ele, assim como para Sohravardi, a fonte da Vida guardada por “Chidr, o tempo” encontra-se nas trevas, e quem nela se banha ou dela bebe se eleva na luz eterna. Chidr, o Verde.
A íntima relação entre Chidr e a fonte da Vida explica igualmente o seu nome, que significa “verde”, em árabe.
Dizem que toda vez que Chidr toca a terra, os campos e as flores, tudo desabrocha.
Esta é uma idéia bastante profunda, pois a cor verde representa um papel importante no islamismo e no sufismo.
Em certos textos, os diferentes estágios do desenvolvimento da consciência e da alquimia são comparados às cores.
Aqui, os ensinamentos do sufismo ligados à alquimia comparam-se aos ensinamentos do persa Nadjm ad-Din al Kubra, do século XII. Nadjm afirma claramente, no início de sua obra: “Nosso método é alquímico. Odores deliciosos da amizade e da manifestação da sublimidade”.
Para ele, a cor verde é a cor da “força vital do coração”. Essa cor é a última que subsiste; dela emanam as irradiações cintilantes banhadas de um clarão radiante. Embora às vezes turva, essa cor pode ser perfeitamente límpida. Sua turvação indica um retorno à escuridão da natureza, enquanto sua pureza traduz a soberania da Luz divina.
No século XI, o persa Simnani levantou a hipótese de que o homem possui sete órgãos sutis (os sete centros energéticos ou chacras), e a cada um deles ele deu o nome de um profeta. Assim ele explica o Corão de forma penetrante: não se trata de personagens históricos, mas sim de símbolos que mostram o crescimento da alma.
O sétimo órgão sutil (latifa) é “Maomé em teu ser”. Esses sete centros de força interior dão nascimento a um novo organismo, e as luzes de cores diferentes que circundam os órgãos sutis nos dão a conhecer os estágios de desenvolvimento. O verde é a cor do sétimo órgão.
Esse simbolismo sugere que Chidr, o Verde, está associado ao crescimento do novo corpo alma.
E é somente em um corpo-alma suficientemente sutil que o Espírito pode manifestar- se e unir-se à alma.
Todos esses exemplos mostram que o caminho que conduz ao reino de Chidr começa na escuridão do mundo da matéria, na fonte de Vida onde a natureza e o Espírito se encontram.
A água da Vida confere compreensão e conhecimento divinos.
O homem se eleva nesse conhecimento e com a nova consciência ele se “torna semelhante a Chidr”.

A partir desse momento, ele permanece no mundo da Luz, embora ainda viva na escuridão, a fim de indicar o caminho a todos os que buscam Chidr, até que também eles o encontrem interiormente.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Páscoa - Simbolismo Gnóstico

Páscoa - Simbolismo Gnóstico

Simbolizada pela comunhão do pão e do vinho dos doze apóstolos.
  


O portal da iniciação abre-se para o servidor resoluto e dedicado que aceita beber o cálice amargo da vida de serviço.

"Pois qual é maior: quem está à mesa, ou quem serve? Porventura não é quem está à mesa? Eu, porém, entre vós sou como aquele que serve." Mestre Jesus, o Cristo (Lucas 22:27)

Os sofrimentos intensos pelos quais passa o iniciado que aceita carregar a cruz do mundo e assumir parte do pesado carma da humanidade são representados nos evangelhos pelos dolorosos relatos da paixão do Senhor.

A morte para o mundo e a ressurreição para a vida eterna, os dois aspectos complementares que simbolizam a iniciação, têm lugar em Jerusalém, a cidade santa. 


Toda a cena e seus personagens, no seu sentido esotérico, deve ser entendida como simbólica.

Mestre Jesus e seus doze apóstolos simbolizam a totalidade do ser humano, sendo a casa onde ocorre a ceia a representação do corpo físico, o templo de Deus.

A ceia tem lugar no pavimento superior (Lc 22:11), ou seja, num estado de consciência elevado.

Mestre Jesus representa a natureza divina do homem, o Cristo interior.

Os doze apóstolos personificam as características do homem no mundo, com suas qualidades e fraquezas.

Pedro, por exemplo, representa a impulsividade e pusilanimidade do homem que ainda não aprendeu a controlar suas emoções. Judas, a ambição, simboliza o lado sombra que acompanha todo discípulo até as últimas etapas do caminho. João, o discípulo que Jesus amava, retrata a alma, a unidade de consciência, que busca a inspiração do Alto, simbolicamente reclinando sua cabeça (símbolo da mente) sobre o coração de Jesus (símbolo do Cristo interior), para aí permanecer no aguardo da Graça Divina.

A sagrada eucaristia representa a integração do ser humano. Os aspectos da natureza humana, com suas negatividades e qualidades, os doze discípulos, recebem do Mestre Jesus, o pão e o vinho, símbolos da carne e sangue do Cristo, com a admoestação: “Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós” (Jo 6:53).

Obviamente Jesus estava falando em linguagem cifrada, indicando que a carne do Cristo significa o conhecimento espiritual, o sagrado alimento que confere iluminação ao intelecto humano.


O sangue de Cristo simboliza a vida divina, o fluido essencial que constantemente se verte sobre todo o universo, sem a qual nenhum ser poderia viver.

A consciência da divina presença no homem iluminado confere a certeza da imortalidade da natureza superior do homem, a vida eterna de que nos fala a Bíblia.

Após a exaltação conferida pela terceira iniciação, a inexorável lei divina da harmonia leva o iniciado a experimentar o seu oposto.


No relato bíblico isso é apresentado como a experiência no Getsêmani, que ocorre apropriadamente após a ceia pascal (Mt 26:36-45).

Mestre Jesus convida três de seus discípulos mais próximos a acompanhá-lo, para juntos orarem.

Mas naquele momento de angústia, em que o iniciado descortina sua missão e os sacrifícios e sofrimentos que lhe sobrevirão, ele verifica que está só.


Não conseguirá nenhum apoio externo ou interno nesse momento de solidão, o que é simbolizado nos evangelhos pelos discípulos dormindo durante a oração (Mt 26:40-45).

Numa atitude normal a qualquer ser humano, ao perceber o intenso sofrimento que lhe aguardava, Mestre Jesus invoca a Deus e diz: “Pai, se queres, afasta de mim este cálice” (Lc 22:42).


Porém, como iniciado comprometido com a missão de redenção da humanidade, aceita as conseqüências de uma vida altruísta de total desapego, ainda que ao preço de sua própria vida, e submete-se humildemente à vontade divina.

O iniciado deve entrar nesse elevado estado de consciência em plena posse de suas faculdades humanas, ou seja, num corpo físico.



Isso é simbolizado pela entrada de Jesus em Jerusalém montado num jumento, um quadrúpede domesticado, que representa os quatro corpos inferiores do homem (físico, etérico, astral e mental concreto) devidamente disciplinados.

O estágio do sofrimento parece ser o companheiro inseparável do iniciado.


Na estória de Jesus, começa com o sofrimento psíquico antecipado no Getsêmani, onde ele se sente terrivelmente solitário e sem o apoio de seus discípulos.

No desenrolar dos acontecimentos, segue-se a traição de um discípulo e a fuga dos outros quando se sentem ameaçados.

Cristo é escarnecido e insultado pela multidão enfurecida, representando as paixões dos homens que sempre zombam da natureza divina.


Depois ele é açoitado e espancado pelos soldados, que são os condicionamentos da natureza inferior que seguem as ordens de nosso inconsciente, sempre preocupado com a manutenção do status quo de nossa vida mundana.

O julgamento é feito por Pilatos, o governante da ordem exterior, que simboliza a personalidade.



Mestre Jesus é devidamente apresentado como aquele que procura subverter a nação e, quando interrogado por Pilatos, confirma que é o Cristo, rei da natureza humana.
Mestre Jesus, o Cristo, responde a famosa pergunta de Pilatos com um anagrama (utilizando todas as letras originais da pergunta na resposta) :

"Quid Est Veritas ?" O que é a verdade?
"Est Vir Qui Adest ! É o homem que está diante de você!

A personalidade, ao lavar as mãos, procura, como sempre, justificar-se alegando não ter culpa por condenar um inocente, pois está atendendo ao clamor da plebe (as paixões) e à recomendação dos sacerdotes, os líderes da natureza inferior, que representam o egoísmo, a ignorância, o orgulho e a ambição.

Seguindo a tradição, Pilatos pergunta ao povo se prefere a libertação de Jesus ou do criminoso Barrabás.


As paixões pedem a crucificação da natureza divina e a libertação do criminoso com o qual, em sua ignorância, identificam-se.

Porém, Barrabás significa, em aramaico, o filho do pai. Portanto, a natureza inferior, mesmo com a conivência da personalidade, jamais conseguirá matar o Cristo.

Ao exigir a libertação do usurpador Barrabás, estará simplesmente permitindo que o filho do Pai celestial, que é a alma ignorante de sua verdadeira natureza, continue a vagar pelo mundo até redimir-se de todos seus crimes contra a grande Lei para, então, retornar à casa paterna como o Cristo triunfante.

O relato da paixão de Jesus representa a via crucis de todos os que passam pela quarta iniciação: devem morrer para o mundo para alcançar a consciência permanente do Reino de Deus, a consciência da vida eterna.


Paulo descreve essa experiência: “Fui crucificado junto com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2:19-20).
É interessante notar que a crucificação tem lugar no monte Gólgota, ou calvário, que significa a caveira.


A culminação dessa importante iniciação ocorre mais uma vez num monte, uma clara indicação de um estado elevado de consciência.

O Golgota representa o crânio humano, o lugar físico onde a consciência divina é crucificada.

Mestre Jesus, expressando a consciência divina, é crucificado entre dois malfeitores, um dos quais seria o bom ladrão (Lc 23:39-43).

Os dois ladrões simbolizam os dois aspectos da mente, um dos quais se volta para o alto e segue o Salvador rumo ao Reino dos Céus.


O túmulo na rocha no qual Jesus teria sido enterrado é também outra representação de que o Cristo espiritual é enterrado no plano mais denso da manifestação, o plano físico, de onde só é libertado após cumprir sua missão terrena.

É dito no Credo dos Apóstolos que, após a morte, Jesus “desceu ao inferno e ao terceiro dia ressuscitou dos mortos.”


Na Bíblia é dito que: “Morto na carne, foi vivificado no espírito, no qual foi também pregar aos espíritos em prisão” (1 Pd 3:19).Para os antigos o inferno não tinha a conotação de tormento eterno estabelecida mais tarde pela igreja.

O inferno era tido como uma região ou lugar oculto, o Hades dos gregos, enfim, um submundo habitado pelas pessoas que deixavam o corpo físico para trás.

Essa passagem pode ser interpretada de duas formas: uma psicológica e outra esotérica.

A conotação psicológica é que o iniciado só pode alcançar a libertação quando desce ao inferno de seu inconsciente e liberta seu lado sombra.


Ele só pode ser livre quando não existirem mais condicionamentos inconscientes em sua natureza inferior.

A interpretação esotérica é que todo iniciado deve descer ao mundo astral e levar a luz e a esperança para as almas atormentadas pelo remorso dos erros cometidos quando encarnadas no mundo.

A morte e a ressurreição do Cristo representam alegoricamente a quarta iniciação. O que morre não é o corpo físico, mas o sentido pessoal de separatividade.

O que ressurge dos mortos é a alma agora consciente da unidade com o Todo e com todos os seres.


A partir desse momento a alma pode deixar o sepulcro terreno, que é o corpo físico, sem nenhum lapso de consciência e entrar nas regiões superiores do mundo celestial.

A vivência da unidade confere ao iniciado uma profunda compaixão.


Para os budistas e hinduístas, aquele que recebeu a quarta iniciação é chamado de Arhat, sendo conhecido como o liberto que não mais precisa retornar ao mundo dos homens, tendo merecido o descanso paradisíaco no que chamam de Nirvana.

A maior parte dos Arhats, no entanto, movidos pela suprema compaixão, comprometem-se a permanecer na esfera terrena para ajudar na libertação de todas as almas sofredoras, até o fim dos tempos.

A alma (Jesus) agora venceu a morte, porque morreu para o mundo.


Simbolizando o término de seu ministério terreno, o iniciado diz, como Mestre Jesus na cruz: “Está terminado” (Jo 19:30) e “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23:46).

No relato bíblico Mestre Jesus retorna dos mortos e fica algum tempo instruindo seus discípulos, preparando-os para prosseguirem com o ministério de salvação das almas.


Esse retorno ao mundo terreno, seja num corpo físico, seja num corpo sutil, dependendo dos textos consultados, comprova o compromisso do iniciado em permanecer em nossa esfera terrena instruindo e ajudando a humanidade.

Chega finalmente o dia que, em grande glória, ele ascende ao céu.

No texto Pistis Sophia a ascensão é descrita de forma tocante, com a descida de anjos portando seus mantos de luz.



Uma vez envolvido na luz, Mestre Jesus é transfigurado e seus discípulos não podem agüentar o brilho de sua luz até que Mestre Jesus desaparece no alto.

Mestre Jesus, como todo o adepto que recebeu a quinta iniciação, pode agora dizer: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10:30).

O objetivo dessa Tradição não é formar meros devotos, ou cristãos tradicionais, mas sim verdadeiros Cristos, nascidos na gruta do coração, sendo batizados, transfigurados, mortos e sepultados, ressurgindo dos mortos e, finalmente, ascendendo em glória aos céus, para permanecerem à direita do Pai.

Essa é a via mística, trilhada por tantos milhares de buscadores sinceros ao longo dos séculos.

Nela todos os ensinamentos e passagens da vida do Cristo retratam a vida de sua própria alma.

Se for bem sucedido nesse propósito, o místico perceberá que as palavras do Cristo eram dirigidas a ele: “Eu vos digo, verdadeiramente, que alguns que aqui estão presentes não provarão a morte até que vejam o Reino dos Céus” (Lc 9:27).




Será excelsa a glória daqueles que alcançarem a perfeição, conforme se pode aquilatar nas palavras do Cristo registradas no Livro do Apocalipse:

“Ao vencedor concederei sentar-se comigo no meu trono, assim como eu também venci e estou sentado com meu Pai em seu trono” (Ap 3:21).

Raul Branco