terça-feira, 24 de dezembro de 2013

A MENSAGEM DO NATAL, por Raul Branco




O Natal é uma das comemorações mais populares da cultura ocidental. Dependendo do nível em que essa comemoração é feita a mensagem do Natal assume diferentes matizes. Em sua origem ela era eminentemente religiosa. Com o tempo, especialmente no último século, aspectos comerciais passaram a ter uma crescente primazia sobre a fundamentação histórico/religiosa da comemoração do nascimento do Cristo.


Mesmo quando as comemorações natalinas assumem o caráter de uma mera festa de ‘aniversário’, com ênfase nos aspectos comerciais e sociais, a mensagem do Natal apresenta um sentido mais profundo. A natureza divina, escondida no âmago de todos os seres e de todas as coisas, aproveita todas as ocasiões para se manifestar, ainda que timidamente, como ocorre nas festividades natalinas tradicionais. Em meio a todas as festas e comilanças costumeiras da ‘ceia de Natal’, algumas qualidades divinas se fazem sentir: (1) a generosidade na troca de presentes; (2) o acolhimento de parentes e amigos, mesmo aqueles um tanto distanciados; e (3) a alegria generalizada dos participantes.

Assim, para a grande maioria da população, a mensagem do Natal é de que a comemoração do nascimento do Filho de Deus é motivo de regozijo para todos, ainda que a razão para a alegria nem sempre seja entendida profundamente pelos participantes.

Antes de examinarmos a comemoração natalina em mais profundidade, convém lembrar que a historicidade da data do nascimento de Jesus está sujeita a grandes controvérsias. 

Até meados do século IV, grande parte dos cristãos, especialmente em Roma, comemorava o Natal em vinte e cinco de março. O Papa Júlio II, numa manobra eminentemente política, decretou, no ano 354, que o nascimento do Cristo seria comemorado em vinte e cinco de dezembro, para coincidir com a data em que era comemorado o nascimento de Mitra e de Baco. 

Como as comemorações de Mitra e Baco eram muito populares naquela época, as festividades natalinas dos cristãos entraram em sintonia com o sentimento popular daquele período do ano e passaram a refletir a alegria do povo romano com os tradicionais eventos pagãos.

Com isso, na prática, Jesus foi equiparado pela Igreja aos outros grandes representantes do Deus Sol na Terra, pois o dia vinte e cinco de dezembro coincide com o solstício de inverno no hemisfério norte, quando ocorre a noite mais longa do ano e, portanto, a escuridão é mais profunda. Nessa data, com o nascimento do sol, os dias passam a aumentar sua luminosidade gradativamente. Por isso, muitos dos grandes seres reconhecidos como portadores da Luz, independentemente da cultura e período histórico, são geralmente apresentados como tendo nascido naquela data simbólica.

Mas a questão histórica do nascimento do Cristo é bem mais complexa. Existem mais de 136 datas sugeridas por diferentes historiadores e grupos cristãos como sendo a verdadeira data do nascimento do Cristo. A simbologia passa a ser mais relevante.sim, a historicidade do evento deixa de ser o fator principal da comem

O segundo nível da mensagem do Natal é o entendimento do significado mais profundo da simbologia em que o nascimento do Deus criança é apresentado no relato evangélico e na iconografia cristã. Esse nível é especialmente importante para o número crescente de indivíduos que estão despertando para a busca espiritual e sentem em seus corações que existe mais na simbologia natalina do que as Igrejas ensinam aos seus fiéis e crentes.

Vejamos o significado dos principais símbolos natalinos. O nascimento do Filho de Deus é anunciado à Maria, pelo Arcanjo Gabriel. O Arcanjo da Anunciação representa o espírito recôndito no homem. Maria representa a inteligência divina, a alma espiritual em cada ser humano. Somente ela é capaz de ouvir a voz do espírito supremo que vive no interior dos interiores. 

O nascimento do Cristo infante representa o despertar do amor divino e da intuição. 

Como esse nascimento é inteiramente espiritual e transcende os planos materiais, ele é realmente imaculado. Por outro lado, no sentido astrológico, por ocasião do solstício de inverno, o sol nasce no horizonte no Signo de Virgem. Esse é outro significado do nascimento virginal de Cristo e de outros salvadores do mundo que são apresentados como nascendo nesta data.

José, o esposo de Maria, representa a mente formal, lógica do ser humano. Assim, os dois formam um par que abrange os dois aspectos da mente, concreta e abstrata. A mente formal, ainda que valiosa e imprescindível para nossa vida terrena, é incapaz de gerar a intuição. Portanto, José não é apresentado como sendo o ‘pai’ de Cristo, mas sim o seu padrasto. A mente concreta de um iniciado avançado é extremamente útil para sua ação no mundo. Portanto, José passa a cuidar amorosamente do infante com todo desvelo. Nesse sentido, os insights intuitivos (Cristo) nascem na mente abstrata (Maria), mas devem ser apresentados ao mundo pela mente formal (José), que reveste com palavras e conceitos a experiência iluminada interior.

Uma série de circunstâncias especiais, de natureza simbólica, cerca o relato bíblico do nascimento de Cristo. Belém, onde Cristo teria nascido, pode ser considerada como representando a humanidade, tanto em seu sentido espiritual como no material. A estalagem, onde o casal busca abrigo inicialmente, representa o lugar onde os interesses materiais pessoais são expressos (kama-manas). Conseqüentemente, é dito no relato evangélico que ela estava ‘cheia’. Assim, não era possível acomodar a divina família. Num paralelo apropriado, a mente ‘cheia’ de pensamentos e apegos materiais não oferece as condições necessárias para que a luz interior possa surgir. O maravilhoso nascimento da consciência crística não pode ocorrer no âmbito da mente mundana, dominada pela busca dos prazeres pessoais e pelo atributo da possessividade.

Portanto, o casal é encaminhado para o estábulo, simbolizando a mais completa humildade e distanciamento dos interesses do mundo. A manjedoura representa o corpo etérico, a fonte de vida e nutrição para o corpo do divino Ser que ali será colocado. Num outro sentido oculto, a manjedoura do estábulo representa um santuário secreto, desprezado pelas pessoas mundanas como um lugar de alojamento, mas usado para promover o nascimento místico em meio das augustas presenças dos pastores e dos magos.

Os pastores na iconografia não cuidam de animais, mas sim de almas. São os Irmãos mais Velhos da Humanidade que guiam aqueles que estão prontos para a grande transformação, descrita como o nascimento do Cristo. Os magos dirigem-se ao local do evento guiados por uma estrela, que simboliza a Luz do Iniciador Uno de nosso planeta, responsável pela aceitação e capacitação dos novos Iniciados. Esses magos representam a tríplice natureza superior, divina em verdade, do discípulo que está sendo iniciado, referida como atma, buddhi e manas, em sânscrito. Os presentes que conferem ao divino infante: ouro, incenso e mirra, representam a vontade espiritual, o amor/sabedoria e a inteligência superior. Com esses “presentes” o Iniciado, agora Cristificado, pode atuar no mundo tornando-se um auxiliar dos Grandes Seres no grande plano de salvação da humanidade.

Até mesmo os animais que se encontram no estábulo têm um significado simbólico. As vacas e ovelhas representam a natureza animal do homem, com seus desejos e paixões. Porém, na alegoria bíblica, esses animais são inteiramente domesticados, ou seja, superaram seu estado selvagem e agora servem docilmente seu divino Senhor. Mais tarde na vida do Cristo, outro animal, no caso um jumentinho totalmente domesticado, servirá como o veículo necessário para levar o Cristo até a Cidade Santa, que simboliza o Reino dos Céus. Ou seja, para que o ser humano possa entrar na consciência da União com Deus, o Reino do Céu, ele necessita que seu quaternário inferior, seus quatro corpos para atuação no mundo terreno, seja inteiramente domesticado para seguir com eficiência as ordens de seu Senhor.

A mensagem do Natal para todo aquele que procura entender o significado mais profundo por trás do relato bíblico do nascimento do Cristo é de que esse evento não foi restrito no tempo e no espaço ao Cristo histórico. Muito pelo contrário, o propósito desse relato é estender um convite permanente a todo aquele que for tocado por seu simbolismo, para se preparar para o nascimento do Cristo em seu próprio coração.

Nesse segundo nível a mensagem do Natal é um convite para que venhamos nos juntar ao Cristo histórico, para nos tornarmos também ‘pescadores de homens’.

O nível mais sutil e profundo da mensagem do Natal é dirigido àqueles poucos homens e mulheres que experimentam a divina insatisfação e se determinam a ‘nascer de novo’, como o Mestre exortou a Nicodemos, que simboliza todo aspirante que anseia dar o próximo passo na Senda. Pode parecer estranho que a insatisfação tenha um papel relevante na vida de um aspirante. 

Porém, enquanto o indivíduo não estiver insatisfeito com a vida deste mundo, com seus prazeres sensuais, consumismo, apego aos bens materiais, ambição e status, ele não terá o incentivo para proceder à mudança radical de vida implícita na Senda espiritual.

Esse estágio já foi aludido de forma enfática por um profundo místico alemão, que escreveu, sob o pseudônimo de Angelus Sillesius, uma mensagem que até hoje ecoa nos corações das almas maduras: Ainda que Cristo venha a nascer mil vezes em Belém, mas não em teu coração, continuarás triste e miserável. A cruz do Gólgota contemplas em vão, a menos que ela seja erguida em teu coração.”

O conhecimento teórico do significado simbólico da iconografia bíblica do nascimento de Cristo tem como propósito nos incentivar a trazer esse conhecimento para a nossa experiência prática. Assim como nossa fome física é estimulada pela visão de um lauto banquete e reforçada pelo aroma dos diferentes pratos, a fome só será saciada se tivermos a determinação de ‘pagar o preço’ para nos sentarmos à mesa do banquete. Nesse caso, o preço simbólico é a renúncia do mundo terreno, expressa por Jesus como “Não a minha, mas a Tua vontade seja feita Senhor”. 

O amor e a entrega a Deus são as duas pernas simbólicas com que o místico caminha resolutamente rumo a sua meta de união com Deus.

Portanto, o terceiro nível da mensagem do Natal implica em nossa transformação de pessoas que meramente ‘assistem’ às comemorações de mais um aniversário do nascimento do Cristo histórico, em discípulos determinados em se tornarem participantes ativos do eterno drama encenado. 

O nascimento do Cristo não mais será visto como algo ocorrendo no exterior, mas como a coroação de nosso propósito de vida, o nascimento de Cristo em nosso coração. Com isso ‘entraremos na corrente’, como dizem nossos irmãos do oriente, e teremos a garantia de ‘alcançarmos a outra margem’, quando então nos tornaremos ‘homens justos, alçados à medida da estatura da Plenitude de Cristo’.

A mensagem do Natal é atemporal. Ressoa eternamente em nossos corações. Cabe a cada um de nós decidir com que nível de mensagem queremos nos sintonizar. Que a Luz de Cristo ilumine nossos corações, que a Energia do Pai nos dê força e determinação para trilharmos a Senda até sua gloriosa meta final e que a inteligência da Divina Mãe nos guie para que possamos superar todos os obstáculos que continuarão a surgir ao longo do caminho.

Um abraço fraterno
Natal de 2011

Raul Branco

Raul Branco é membro da Sociedade Teosófica, economista, mora em Brasília Seu despertar espiritual ocorreu aos 49 anos, quando começou a buscar no yoga, no budismo, no vedanta e na teosofia respostas para as incessantes perguntas de seu coração. Descobriu, finalmente, que não precisava buscar longe o que estava perto, ou seja, o cristianismo primitivo pouco conhecido em nossa tradição cristã, dedica-se ao estudo da tradição cristã e do gnosticismo. É autor e ou tradutor dos seguintes Livros: Despertando a Luz Interior, Mensagens dos Mestres? Pistis Sophia, O Hino da Pérola, O Poder Transformador do Cristianismo Primitivo.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Hino da Pérola

Esse Hino, atribuído a Bardesanes, influente poeta do gnosticismo cristão do século II, oferece uma excepcional oportunidade para percebermos a profundidade do misticismo nos primórdios de nossa tradição interna.
O Hino apresenta um comovente relato da peregrinação da alma, que culmina com a sua ‘salvação’, representada pela aquisição da ‘pérola’ (a gnosis), e o conseqüente retorno ao reino da Casa do Pai, num estreito paralelo com a parábola do Filho Pródigo. Deixemos que a mensagem celestial de esperança penetre em nossos corações, pois a estória que será narrada é a história de nossa vida.
“Quando eu era criancinha, demasiado novo para falar e morava no Reino da Casa de meu Pai, deleitando-me na riqueza e no esplendor daqueles que me nutriam, meus pais me enviaram do oriente, nosso lar, numa missão, equipado com suprimentos para a jornada. Das riquezas de nossos tesouros eles me deram um grande carregamento, mas que era leve, para que eu pudesse carregá-lo sozinho.A carga consistia de ouro das terras altas, prata dos grandes tesouros, jóias de esmeraldas da Índia e ágatas de Kushan. E cingiram-me com diamantes. Retiraram a minha veste cravejada de jóias e adornada de ouro que, por seu amor, haviam feito para mim, e meu manto de púrpura, confeccionado na minha exata medida.
E fizeram um pacto comigo, gravando-o em meu coração para que eu não pudesse esquecê-lo, dizendo isto: ‘Se tu fores ao Egito e dali trouxeres a pérola que se encontra no meio do mar, envolta pela serpente voraz, então colocarás outra vez a veste cravejada de jóias e, por cima, o manto que tanto aprecias e serás um herdeiro de nosso reino, juntamente com teu irmão, o segundo em nossa hierarquia. Deixei o Oriente e parti acompanhado de dois guias, pois o caminho era difícil e perigoso e eu era jovem para uma tal viagem. Atravessei as fronteiras de Maishan, o lugar de encontro dos mercadores orientais, cheguei à Terra de Babel e entrei pelas muralhas de Sarbug. Continuei e, chegando ao Egito, meus acompanhantes separaram-se de mim.
Incontinente procurei a serpente, estabelecendo-me próximo de sua morada, aguardando a ocasião em que ela ficasse sonolenta e fosse dormir, para então tirar-lhe a pérola. Como estava sozinho e me mantinha à parte, parecia um estranho para meus companheiros de hospedagem. Entretanto, lá eu vi um homem livre, meu parente da terra da Alvorada, um jovem formoso e bem favorecido, filho de Nobres. Ele veio e juntou-se a mim.
Fi-lo meu parceiro predileto, um parceiro para minhas jornadas. Como constante companheiro alertou-me sobre os egípcios, para que evitasse misturar-me com os impuros. Pois, havia me vestido como eles, para que não pudessem imaginar que eu era estrangeiro e tinha vindo de longe para apossar-me da pérola e pudessem assim incitar a serpente contra mim.
Mas por alguma razão, eles souberam que eu não era de seu país. Com suas artimanhas, apresentaram-se a mim e ofereceram-me seus alimentos para comer. Ao prová-los, esqueci-me que era filho de um Rei e tornei-me um servo do rei deles. Esqueci completamente a pérola para a qual meus Pais me haviam enviado e, com o peso de seus alimentos, mergulhei num sono profundo.
Meus Pais percebiam tudo aquilo que estava acontecendo, e ficaram ansiosos. Foi feita então uma proclamação em nosso Reino: que todos se apresentassem rapidamente no Pórtico. E então os reis e chefes de Partia e todos os nobres do Levante decidiram que eu não deveria ficar no Egito. Escreveram-me uma carta e nela todos os nobres assinaram seu nome:
"De parte de teu pai, o Rei dos Reis, de tua mãe, Senhora do Levante, e de nosso segundo, teu irmão, ao nosso filho no Egito, saudações! Acorda e desperta de teu sono. Ouve as palavras de nossa carta! Lembra-te que és filho de um rei; vê a quem serviste em tua escravidão. Pensa outra vez sobre a pérola, a razão pela qual viajastes ao Egito. Lembra-te de tua veste gloriosa e de teu esplêndido manto, para que possas outra vez vesti-los e usá-los como ornamentos, e para que teu nome possa ser lido no Livro dos Heróis, e com nosso sucessor, teu irmão, possas ser herdeiro em nosso reino.”
A carta, que o Rei havia lacrado com sua mão direita, era como um mensageiro contra a ameaça dos filhos de Babel e dos rebeldes demônios do Labirinto. Ela voou na forma de uma águia, a rainha de todas as aves; voou até pousar ao meu lado, transformando-se num discurso inteiro. Com sua voz e o som de sua asas, levantei-me, despertando de meu sono profundo. Tomei-a, beijei-a, parti seu lacre e a li. As palavras de minha carta estavam redigidas como as que estavam escritas em meu coração.
Lembrei-me naquele momento que eu era filho de rei e que minha alma, nascida livre, tinha saudade daqueles da mesma natureza. Lembrei-me novamente da pérola, pela qual eu havia sido enviado em missão ao Egito. E comecei a cativar a terrível e ruidosa serpente. Encantei-a para dormir, cantando para ela o nome de meu Pai, o nome de nosso segundo e o de minha mãe, a Rainha do Oriente.
Apoderei-me, então, da pérola e parti em direção à casa de meu Pai. Retirei as vestimentas sujas e impuras, deixando-as em seu país de origem. Dirigi-me para o caminho pelo qual havia vindo, a estrada que leva à Luz de nossa casa, o Oriente. No caminho, encontrei diante de mim a mensagem que havia me despertado. E assim como ela havia me despertado com sua voz, agora me orientava com sua luz que brilhava à minha frente; com sua voz vencia meu temor, e com seu amor me conduzia. Eu segui adiante... Vislumbrava, às vezes, as vestes reais de seda, brilhando diante de mim. Segui adiante; passei pelo Labirinto; deixei a Terra de Babel à esquerda; e cheguei a Maishan, o lugar de encontro dos mercadores, que se localiza na costa.
Meus pais enviaram-me a Veste de Glória que eu havia despido e o Manto que a cobria. Enviaram-nos das alturas de Hyrcânia, pelas mãos de seus distribuidores de tesouros, pois que, por sua lealdade, a eles podiam ser confiados. Sem me lembrar de seu esplendor, pois a havia deixado na Casa de meu Pai na minha infância, ao vê-la, imediatamente a Veste pareceu-me como a imagem de mim mesmo.
Percebi nela todo o meu ser e, por meio dela, reconheci-me e percebi-me. Pois, apesar de termos sido originados da mesma unidade, éramos parcialmente divididos e, no entanto, éramos também unos em semelhança. Também, os tesoureiros que a haviam trazido do alto para mim, vi que eram dois seres, mas havia uma única forma em ambos, um único símbolo real consistindo de duas metades. E traziam meu dinheiro e minha riqueza em suas mãos e deram-me minha recompensa.
A gloriosa veste reluzente, enfeitada com brilhante esplendor de cores: com ouro, pérolas e também com pedras preciosas de diferentes cores. Para realçar sua grandeza estava cingida com diamantes. (Além disso) a Imagem do Rei dos Reis estava estampada inteiramente nela; pedras de safiras tinham sido afixadas na gola com lindo efeito.
Percebi, que movimentos de gnosis abundavam em toda sua extensão, e que estava se preparando como que para falar. Ouvi o som de sua música, que sussurrava ao descer: ‘Sou eu que pertence àquele que é mais forte do que todos os seres humanos e para o qual fui indicada pelo próprio Pai. E percebi em mim como minha estatura aumentava com sua atividade’.
E (agora), com seus movimentos reais, ela vinha em minha direção, como que apressada nas mãos de seus doadores, para que eu pudesse (tomá-la e) recebê-la. E de minha parte, também, meu amor instava-me a correr ao seu encontro e tomá-la. Estendi-me para recebê-la; com sua beleza colorida vesti-me e enrolei-me em meu manto de cores resplandecentes.
Vestido dessa forma, ascendi ao Portal das Boas Vindas e da Reverência. Inclinei minha cabeça e prestei homenagem à glória do Pai que a havia enviado, cujas ordens eu havia cumprido, e que, de sua parte, também havia feito o que prometera. Ele recebeu-me com alegria, e fiquei com Ele em seu Reino, e todos seus súditos estavam cantando hinos com vozes reverentes. Ele permitiu-me também ser levado à corte do Rei em sua companhia, para que com a pérola eu pudesse comparecer diante do Rei.
A estória começa quando uma alma demasiado nova para falar (exercer seus poderes) é enviada, por seus pais, do mundo espiritual para o mundo material, numa missão que representa a grande peregrinação da alma. O oriente é onde nasce a luz do sol físico e, no sentido figurativo, é a origem da Luz espiritual primordial. A alma é enviada com suprimentos para a jornada, que são a substância de todos os planos pelos quais o peregrino deve passar. As riquezas do tesouro do pai, jóias e metais preciosos, referem-se aos poderes espirituais, que possuem grande valor e nenhum peso, podendo ser carregados facilmente pela alma. O ouro das terras altas simboliza a mais elevada sabedoria espiritual e a prata a compreensão espiritual; o diamante, a pedra mais preciosa, simboliza a essência espiritual do universo e sua expressão no homem como coragem intrépida e vontade indomável (a pedra mais dura que risca todas as outras); a safira representa a sabedoria.[2]
Para encetar a viagem o jovem deve retirar sua veste real e seu manto de púrpura. Temos aqui a descrição do processo involutivo, a penosa descida do espírito à matéria. A alegoria da retirada das vestes espirituais refere-se à desativação dos poderes espirituais no espírito encarnante que deve recobrir-se com roupagens cada vez mais grosseiras, culminando na colocação de vestes que, por suas vibrações pesadas, são consideradas como impuras, o corpo astral e o físico.
Segue-se, então, o curioso pacto feito por seus pais, que é gravado no coração do peregrino, no âmago de seu ser, para que nunca mais possa ser esquecido. Esse pacto simboliza a missão do homem no mundo, que encerra a promessa de seu retorno triunfal às glórias celestiais.
O conhecimento interior desse pacto explica a insatisfação latente que aflora no homem em determinados momentos, quando experimenta um sentimento de carência, uma saudade inexplicável que o persegue, até que entende que as coisas externas deste mundo não atendem aos profundos anseios da alma. Começa, então, a busca do verdadeiro tesouro, quando se dá a compreensão de que vivemos em desterro neste mundo distante.
O pacto envolve a ida ao Egito, onde deverá recuperar a pérola preciosa que se encontra escondida no meio do mar, guardada pelas forças da matéria, simbolizadas pela terrível serpente. Essa pérola representa a gnosis, termo grego que significa conhecimento, porém não um conhecimento qualquer, mas o conhecimento último da Realidade, que é vivencial e não meramente intelectual.
O mar é o símbolo tradicional do plano emocional, onde se produzem as paixões e os desejos. A serpente, sobre a qual quase nada é dito no Hino, simboliza a tremenda força telúrica que, como desejo sexual, é a força da procriação, mas que quando sublimada e dirigida para o alto torna-se o poder da criação espiritual. Insinuada como um monstro terrível, a serpente é na verdade o fogo serpentino, chamado no oriente de kundalini, que deve ser despertada e elevada cuidadosamente até o centro da cabeça, onde se encontra com a força espiritual que desce pelo chacra coronário para conferir a iluminação ou gnosis, simbolizada pela pérola.
O curioso é que o prêmio por essa realização extremamente difícil é o retorno ao estado inicial. Em paralelo com outras tradições, percebe-se aqui que os universos passam por infindáveis ciclos de manifestação e retração. Em cada ciclo a consciência divina desce progressivamente à matéria, num processo de involução, seguido por uma etapa evolutiva em que vai se sutilizando, desprendendo-se progressivamente do jugo da matéria, até manifestar plenamente sua natureza divina original.
O nobre filho parte do Oriente, da terra da luz, acompanhado de dois guias. Esses, são provavelmente aqueles seres divinos chamados de Arcanjos, Elohim ou Sefirotes cuja missão é facilitar a descida da emanação das Mônadas dos planos da plenitude celestial até o corpo físico.
Segue-se um relato da passagem do jovem por diferentes lugares. A denominação desses locais deve corresponder à realidade histórico-geográfica da época em que o hino foi escrito e vela o seu significado interno. Atravessar as fronteiras de Maishan significa a passagem da alma pelos limites do mundo celestial, ou a ponte entre o mundo espiritual e o material, chamada no oriente de anthakarana, e na Cabala referida como a sephira Tiphereth. É nesta esfera que os seres de luz se ‘misturam’ com os seres materiais, o lugar de encontro dos mercadores orientais. Esse local, ou melhor dito, plano de consciência, parece simbolizar o ponto de transição entre a mente superior e a inferior, onde os conceitos abstratos são cambiados por conceitos concretos utilizados neste mundo.
Chegam, então, à Terra de Babel, que tradicionalmente expressa a confusão dos sons, ou seja, das vibrações do plano dos desejos, das emoções e das paixões. Entram pelas muralhas de Sarbug, também referida como o Labirinto, simbolizando os inextricáveis meandros da Providência, que determina o destino dos homens, provavelmente uma alusão ao plano etérico em que uma complexa rede de ligações energéticas determina a conformação e as tendências dos corpos humanos. Ao chegarem ao Egito, símbolo do corpo físico, seus acompanhantes, tendo cumprido sua missão, retornam a seu mundo de origem.
Nosso aventureiro estabelece-se numa hospedaria, ou seja, no corpo físico em que veio ao mundo (para os gnósticos, o corpo humano era considerado como uma hospedaria da alma, expressando a idéia da impermanência). Ele parece um estranho aos seus companheiros, pois, enquanto o peregrino estiver consciente de sua missão divina, apesar de estar vestido como os egípcios (encarnado), será de alguma forma diferente dos outros, na medida em que seu comportamento e suas motivações estarão pautados por interesses que não são deste mundo. O viajante, porém, alia-se a um ‘homem livre, filho de nobres da terra da Alvorada’. Esse, ‘jovem formoso e bem favorecido,’ representa o guia, ou instrutor espiritual, que sempre aparece quando o peregrino está em busca do supremo tesouro, e sua orientação e ajuda são inestimáveis para que o buscador possa realizar sua missão.
O nobre amigo do nosso herói aconselha-o a não se misturar com os impuros. Os egípcios, porém, com suas artimanhas, apresentam-se ao viajante e oferecem-lhe seus alimentos. No caso, mais do que alimentos físicos, trata-se de alimentos para as emoções e as paixões, para o orgulho e a ambição, que mantêm a mente constantemente direcionada para atividades ligadas às coisas deste mundo. Com isso, o filho do Rei esquece-se de sua missão e torna-se súdito do rei local, ou seja, passa a atender aos interesses materiais, mergulhando num profundo esquecimento das coisas espirituais.
Seus Pais percebiam tudo o que se passava e ficaram ansiosos. A ansiedade dos Pais é um véu, pois sabiam desde o início a natureza difícil da missão de seu filho e o longo tempo que deveria durar. Porém, chegado o momento apropriado na longa jornada da alma, que só a providência divina conhece, a corte divina envia uma mensagem em que cada membro da hierarquia celeste assina seu nome. Assinar o nome significa colocar seus poderes à disposição do destinatário.
A carta lembra uma referência similar existente no livro Voz do Silêncio,[3] onde é dito que o guia é a voz interior, a expressão da consciência divina, que só pode ser percebido quando há total silêncio interior e, portanto, quando o indivíduo não mais está voltado para as coisas do mundo.

A carta voa como uma águia e, ao pousar ao lado do destinatário, transforma-se num discurso. A águia, a ave mais poderosa que voa em direção ao sol (o Logos) e desce para tomar pequenos quadrúpedes como presa (a personalidade quaternária), simboliza a natureza divina no homem que é enviada como mensageiro ao peregrino na terra distante.
A águia representa o Cristo interior, a intuição espiritual, que ao pousar traz a verdade espiritual para o plano da mente concreta. Esse é um lindo simbolismo para a mensagem enviada pelo Pai e a corte celestial que, na realidade, já se encontra no interior da alma, no âmago do ser.
O vôo representa a elevação de consciência que permite a percepção do mundo sutil além dos interesses mundanos.A graça divina permite que o atribulado aventureiro possa ouvir a voz do silêncio, a mensagem da carta, e assim ele se levanta, despertando de seu sono profundo.
O buscador regozija-se com a dádiva recebida, a lembrança de sua verdadeira natureza, e agradece a seus Pais, beijando a carta, ou seja, absorvendo a mensagem de seu Eu Superior à sua consciência usual. O beijo é usado com freqüência na linguagem sagrada para expressar a união, nesse caso a união da consciência superior (a mensagem do plano intuitivo simbolizado pela águia) com a consciência inferior (o jovem peregrino).
O viajante percebe, então, que a carta já estava escrita em seu coração desde o princípio. Ela é a mensagem da Vida Una, que reverbera nos planos sutis desde o princípio da manifestação. Essa idéia é também expressa por Paulo:“Nossa carta sois vós, carta escrita em nossos corações, reconhecida e lida por todos os homens. Evidentemente, pois, uma carta de Cristo, entregue ao nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos corações!” (II Cor 3, 2-3).
Ao receber a mensagem da carta, o buscador desperta e parte para cumprir sua missão. A estória não dá maiores detalhes sobre como é obtido o tesouro, além da informação de que o jovem começou ‘a cativar a serpente, encantando-a para dormir, cantando para ela o nome de seu Pai’. Está implícito o poder dos nomes sagrados da divindade, usados na Cabala como mantras. O peregrino invoca o nome do Pai, da Mãe e de toda a hierarquia celestial, mobilizando toda a força divina dos Arcanjos para despertar e utilizar os tremendos poderes da serpente adormecida, a kundalini, elevando-a até a cabeça onde ocorre a iluminação libertadora, a gnosis, simbolizada pela pérola. Esse processo tem um estreito paralelo com a Cabala, em que a consciência é elevada pelo pilar central, usando a força armazenada na base, na sephira Yesod, valendo-se então da intermediação do redentor Tipheret, para finalmente alcançar a sephira oculta, Daath, que significa Conhecimento, ou seja, gnosis.

Uma vez obtida a pérola preciosa, o peregrino está livre do Egito e parte em direção à casa do Pai, deixando para trás as vestimentas impuras.
Isso parece indicar que, tendo obtido a iluminação, o buscador liberta-se do mundo da matéria e, simbolicamente, descarta seus corpos grosseiros. Caso deseje mais tarde voltar numa missão de misericórdia para ajudar outros buscadores adormecidos no Egito, poderá adquirir veículos, ou vestimentas, apropriados para esse tipo especial de missão que, apesar de serem idênticos aos usados pelos moradores da terra, não são sujos nem impuros, pois foram especialmente confeccionados para o nobre, agora um Mestre de Compaixão e Sabedoria.
Nosso herói retorna pelo caminho pelo qual viera. A direção do oriente simboliza a direção de onde vem a luz, portanto, a alma dirige-se para as alturas espirituais, o que também significa, voltar-se para o seu interior. Ocorre agora uma aparente contradição. O herói encontra, no caminho diante de si, a mensagem que o havia despertado. É como se houvesse um segundo encontro com a mensagem.
Como o herói está liberto das limitações do corpo físico, agora pode perceber o que se encontra no recôndito de seu ser. A expansão de consciência, que inicialmente despertou a sua audição sutil, agora desperta também a sua visão espiritual. Essa parece ser a tendência da maior parte dos aspirantes na Senda, primeiramente a audição espiritual é desperta e só mais tarde a visão. Segue adiante, portanto, reconfortado pela voz amorosa do mestre interior e por visões diáfanas das vestes reais do mundo celestial. A Voz é o aspecto feminino do poder, e a Luz, o masculino, que guia, controla e ordena. A Voz e a Luz também podem ser interpretadas como sendo a Verdade Eterna, como nas Odes de Salomão.[4] Ele vê as vestes mas ainda não pode vesti-las, pois não entrou no mundo da luz.
A crescente expansão de consciência que nosso nobre experimenta é descrita como uma viagem. Assim, é dito que ele deixa para trás o Labirinto e a Terra de Babel, chegando a Maishan, o lugar de intercâmbio entre os mundos espiritual e material. Uma vez transposto esse limite, expresso como ‘a costa’ onde se localiza a Maisham simbólica, aparecem os distribuidores do tesouro portando a Veste de Glória que havia sido deixada na casa do Pai. Mais uma surpresa: a veste se parece como a imagem dele mesmo.[5] O reencontro consigo mesmo, o reconhecimento de sua imagem primordial e a união com ela significam o verdadeiro momento da salvação.
O fato de a veste parecer-se com seu dono é de grande importância em todas as tradições esotéricas. O conhecimento de nossa verdadeira natureza só pode ser realmente obtido através da gnosis, quando então percebemos todas as implicações de sermos a centelha divina interior, unos com o Pai e, portanto, com todos os seres.
Os tesoureiros apresentam-se como dois seres com uma única forma, representando a verdade oculta de que, no mundo da manifestação, toda unidade apresenta-se de forma dual. Cada ser de luz é completo trazendo em si os dois aspectos da totalidade, masculino e feminino, força e forma.
Os dois tesoureiros também representam o Mestre instrutor, que até então havia guiado ocultamente o jovem nobre, e o Grande Hierofante que concede a Iniciação, ou seja, a Veste de Luz que simboliza a iluminação suprema. Os fiéis depositários dos tesouros do Rei finalmente entregam a recompensa prometida ao herói, a veste gloriosa. A veste cravejada de jóias, os tesouros espirituais, tem estampada a Imagem do Rei dos Reis, ou seja, é uma expressão do Supremo. Ele, então, percebe que ‘movimentos de gnosis abundavam em toda a extensão (da veste) que estava se preparando como que para falar.’
A consciência da unidade faz com que a gnosis suprema seja concedida, desvelando a verdade sobre todas as coisas diretamente à mente.Pelas palavras da veste fica claro que o conquistador recebeu a iniciação final que o torna um super-homem, um Mestre de Compaixão e Sabedoria. Isso é confirmado pelo Nobre que diz: ‘E percebi em mim como minha estatura aumentava com sua atividade.’
O próximo passo é a cerimônia de posse da veste, que simboliza o grande esplendor que deve ser a cerimônia de iniciação de um Mestre. A beleza colorida da veste e o manto de cores resplandecentes expressam o fato de que ao tornar-se Uno com o Todo, o Adepto tem a seu alcance os poderes dos sete raios, simbolizados pela profusão de cores. Finalmente o vencedor coloca a veste de luz e o manto de poder, ascende ao ‘Portal das Boas Vindas e da Reverência’, onde inclina-se e presta homenagem à glória do Pai. Esse o recebe com alegria, da mesma forma como o Pai agiu na parábola do filho pródigo, e todos os súditos do Reino participam das comemorações, pois mais um Filho de Deus, ou um raio do Sol Espiritual, retornou à fonte depois de cumprida sua missão.
Raul Branco

[1] A versão aqui apresentado é uma tradução cotejada dos textos dos livros The Gnostic Religion, de Hans Jonas, The Other Bible, de Willis Barnstone, The Hymn of the Robe of Glory, de G.R.S. Mead e The Gnostic Scriptures, de Bentley Layton. As diferenças existentes entre as versões em inglês desses quatro autores explicam-se, em parte, pelo fato de existirem originais em grego e siríaco, que apresentam algumas diferenças.[2] Vide Geoffrey Hodson, The Hidden Wisdom in the Holy Bible, vol. I, pg. 181/183.[3] H.P. Blavatsky, A Voz do Silêncio, ( Editora Pensamento)[4] “Ascendi à luz como se na carruagem da Verdade, a Verdade guiava e me levava. Ela me carregou sobre golfos e abismos e me agüentou na subida de gargantas e vales. Ela tornou-se para mim um porto de salvação e colocou-me nos braços da vida eterna.” (Ode 38, 1-3)[5] A idéia de que a Veste é sua imagem também foi expressa por Paulo: “E nós todos que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é Espírito.” (II Cor 3,18)

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Cátaros e Catarismo


Primórdios ocultos do catarismo!Freqüentemente são agrupados sob o nome de gnósticos grupos muito diferentes, até mesmo opostos, para ter um motivo para combatê-los, exterminá-los, e sobretudo caluniá-los. Os Essênios formaram uma comunidade gnóstica de judeus piedosos que claramente se distanciaram de seus compatriotas.
Eles se diferenciavam pela pureza de seu caminho e de sua vida.
Eles se distinguiam pela completa pureza de seus costumes.
Eles aprovavam o casamento como forma de conservação do gênero humano, mas não se guiavam pelas volúpias da carne.
Condenavam os juramentos, a propriedade de bens, a alimentação carnívora e abominavam a mentira.
Eles viviam em perfeito desapego das paixões e conflitos humanos ordinários e dos bens terrenos.

Eram chamados também de Terapeutas, porque curavam os doentes.
Esta comunidade de “puros” se apresentava como a guardiã do verdadeiro sacerdócio hebraico.
Ela preparava o nascimento da nova era de luz: a era cristã.
Enviados e guiados da fraternidade dos essênios, dos “mestres da justiça”, eles representavam, por intermédio de suas vidas e atitudes, a vinda de um “novo homem”, do qual Mestre Jesus, o Cristo era o protótipo.

Para os essênios, não era possível se aproximar dos mistérios divinos senão por uma vida no Espírito, pelo amor a Deus e pelo respeito aos homens e à vida. Devido a seu modo de viver como os primeiros cristãos, os Pais da Igreja os consideram como cristãos apostólicos.A Escola de Alexandria deve ser considerada como um período de fusão das principais filosofias da Antigüidade. Um gigantesco cadinho em que as religiões e filosofias do mundo vieram se mesclar: judaísmo, platonismo, cristianismo, gnosis cristã e egípcia.

O helenismo aí revela a antiga sabedoria dos Mistérios, retirada da fonte original comum: o Egito. Ali se pode ver o magnífico paralelismo entre Fílon e Platão. Ammonius Saccas, fundador da doutrina neo-platônica, aí se tornou uma luz: pagãos e cristãos, que admirável, usavam seu nome.

Clemente de Alexandria, Orígenes e cristãos encontravam-se com pagãos como Plotino e Porfírio. Os gnósticos se ocupavam ativamente em desembaraçar a filosofia, a ciência sagrada. Eles abordavam de maneira audaciosa os maiores problemas (a existência do mal, o tempo e a eternidade, a corrupção universal e o caminho da perfeição, o homem e Deus) e pretendiam resolvê-los graças à Gnosis, a revelação interior de Deus.Isso explica por que a maioria dos padres gregos, nutridos pela Gnosis alexandrina, guardaram essa impressão de alta espiritualidade: Clemente de Alexandria, João Crisóstomo, Orígenes.
Um século depois de Agostinho, que fora maniqueu antes de ser cristão católico , Atanásio, bispo de Alexandria, professava uma doutrina da alma digna de um verdadeiro gnóstico. Tertuliano teria sido um dos primeiros fiéis da Igreja dos “puros” (catharoï); como Montanius, fundador da primeira Igreja cátara em 140; como Novat, bispo cátaro em Cartago; como Novatiano, que se tornou papa, e permaneceu papa (em 250) durante vinte anos!
Foi nesse verdadeiro cadinho espiritual alexandrino que se confrontaram a sabedoria de Hermes, o essenismo e o neoplatonismo com o cristianismo, em cujo espírito o catarismo se desenvolveu.
Desde a aurora dos tempos, os que transmitiram a sabedoria, a Gnosis, incitaram a humanidade a descobrir que um caminho de regresso à perfeição original existe e que um processo imenso e misterioso leva à verdadeira vida, a vida do homem-alma-espírito.Em verdade, de Rama, o arquidruida, até Hermes Trismegisto, de Hermes a Pitágoras, de Pitágoras a Virgílio, de Virgílio a Dante, é a mesma corrente espiritual e secular que gira. Celtismo e pitagorismo são irmãos. Druidismo e cristianismo se completam, e não é de modo algum por acaso! A essência da doutrina dos druidas é cristã em seus fundamentos puros, embora ela tenha sido elaborada antes de Cristo.

Índia, Egito, Palestina, Grécia e Alexandria;Pitágoras, Platão, Jesus; Dante, Gnosis islâmica;para finalmente aparecer na Europa com os cátaros, os templários, os rosacruzes...Uma longa corrente áurea, uma série de elos conectados uns aos outros.Mas é sempre o mesmo pensamento no trabalho, um fundamento espiritual idêntico que reencontramos sob símbolos diferentes: a Gnosis, o templo do Espírito, a Fraternidade Universal.O Mistério envolve todas as origens: a do mundo, a do cristianismo, a do homem.Cristo, ele próprio, trabalha em uma “nuvem luminosa”; e quando ele enraíza profundamente o trono divino, vemos surgir através do matagal confuso três ramos-raiz:


O ramo judeu e tradicional de São Pedro;
O ramo grego de São Paulo;
O ramo oriental, platônico e místico de São João.

A qual dessas três ramificações primitivas se ligam os cátaros, o catarismo dos Pireneus franceses, com o maniqueísmo aquitano, os templários e mais tarde os rosacruzes?Evidentemente à última, a de João, filho de Zebedeu, o discípulo bem amado do Senhor!Moisés desceu das nuvens trovejantes do Sinai portando as Tábuas da Lei. Cristo, ascendendo em sua glória, deixa ao mundo apenas seu Verbo. O Verbo se condensa em um evangelho primordial. Esse arqui-evangelho hebreu é dividido em quatro evangelhos gregos que se fragmentam em uma multiplicidade de lendas evangélicas escritas em idiomas orientais. Cada nação tem sua própria biografia de Jesus, cada grupo de fiéis modifica a imagem de Cristo de acordo com suas próprias idéias:

Para os judeus, ele é “filho de Abraão”;

Para os gregos, ele é “Filho do Homem” e suas origens remontam a Adão;

Os orientais ignoram toda sua genealogia humana e vêm nele apenas o Verbo, Filho de Deus.Cristo também tem sua mitologia. A igreja se arroga o direito de tornar proscrita essa diversidade de lendas apócrifas e considera verdadeiros apenas os quatro evangelhos: o homem, o leão, o touro e a águia. O concílio de Nicéia os declara “os únicos ortodoxos”. Mas a fonte dos quatro rios, o exemplar único e original, o arqui-evangelho, desapareceu! Gregório de Naziance, bispo greco-asiático do século IV, patriarca de Constantinopla, dizia:

“Mateus foi escrito para os hebreus;

Marcos, para os romanos;

Lucas, para os helenos;

João, para todos os povos do Universo.

”No lugar do “Verbo”, os cátaros invocavam o Paracleto.

O evangelho de João se constituía quase inteiramente sua Bíblia, onde sua história principiava.O Apocalipse de Patmos abria sua epopéia. Seu espírito tinha o temperamento da águia, símbolo de “Boanerges” (filho do trovão). Pelo apóstolo João, o “amado do Salvador”, e pelo seu evangelho, os cátaros eram não somente da mais pura linhagem evangélica, mas ainda da mais alta origem ortodoxa. Entretanto, eles ultrapassaram esse poderoso impulso até o mais alto ideal cristão. O evangelho espiritual estava ligado ao sentido da mais alta realização: o homem-espírito.

Eles não eram apenas místicos, eram também gnósticos.Seu cristianismo era uma “gnose”, um “conhecimento” dos mistérios divinos e uma pregação. Seu chefe era o Verbo que ensina. Como o Deus Salvador de Platão, ele salvava pela verdade, não pela expiação ou martírio.A razão nunca pôde explicar a coexistência simultânea do infinito e do finito, de Deus e do mundo. Se o Espírito é o Ser, a matéria é o nada. Se o Espírito é o bem, a matéria é o mal, ou seja, o não-ser. Deus, sendo o Ser infinito, a carne é apenas uma sombra, o mundo uma aparência, o destino um drama trágico, fantasmagórico!Havia gnósticos judeus e gnósticos greco-sírios. A estes últimos estava ligado o catarismo da região dos Pireneus. Eles eram gregos orientais.Greco-hindu, o catarismo rejeitava o judaísmo, os livros hebreus, as violências de Moisés, os trovões de Jeová.“Deus é Amor”.

Ele se distingue claramente do maniqueísmo persa ao rejeitar o dualismo entre o Espírito e a matéria, seu mal eterno, seus resquícios do mazdeísmo. Zoroastro lhe era tão estranho quanto Moisés.Cristão, anterior ao cristianismo do Concílio de Nicéia, o catarismo não aceita os livros judeus, nem os evangelhos judaicos, nem os símbolos da Igreja imperial, nem as pompas pagãs da teocracia romana.Ele está ligado, sobretudo, a Montanius, a Marcion, os primeiros “cátaros” (140-199), a Novat, a Novatiano (o papa cátaro).

Gnóstico, ele se separa dos outros gnósticos deixando de lado os éons, os Abraxas, os diagramas, os números cabalísticos. Ele se separa do tronco cristianismo pelo ramo-raiz de São João e forma como um neo-cristianismo mediante a elevada idéia geradora do Paracleto.“Religião do Espírito” (Mani, manas, mens, designando o pensar superior, o Espírito).

É a religião de Hermes, o Mercúrio da cultura latina.Nos ensinamentos “herméticos”, a tônica é colocada no pensamento superior que é a alma divina: somente a alma, nascida no coração, se liga ao Espírito. Ela “conhece” Deus. Ela serve a Deus pela razão esclarecida. Somente o Espírito, manifestado na Alma, salva o ser humano.
Inspirado por Alexandria, esse movimento se diferencia do neoplatonismo por rejeitar todas as mitologias e tradições órficas, homéricas e olímpicas, para se unir, por intermédio de João, a Cristo.O Evangelho de João é para ele, “o livro levado pelo anjo ao Zênite do Céu”.Ele se destaca de Francisco de Assis, bem como de Joaquim de Flore, pelos seus dogmas alexandrinos e por seu insuperável horror a Roma, dos horrendos processos da Inquisição, da morte dos hereges proclamada por Leão I em 447, da vergonhosa condenação do livre pensamento pelos grandes teólogos católicos, dos quais o modelo, sem sombra de dúvida, foi fornecido por São Tomás de Aquino.

O que eles adoravam era “Mani”, ou o Espírito Santo. Maneísmo não é sinônimo de maniqueísmo. Que trágico erro tem causado esta confusão propositada! É todo o drama cátaro!
A Occitânia ( sul da França) foi a terra do reencontro predestinada da corrente cristã de origem bogomila, introduzida no ocidente pelos mercadores “boulgres” ou búlgaros (dentre os quais Paulo, o Armênio) no século X, com a corrente pirenaica vinda da Espanha. A corrente espanhola surgiu na costa oriental do Mediterrâneo durante o século I. Ela se fortificou em Alexandria em contato com o neoplatonismo de Plotino e Orígenes.Então, essa corrente espiritual de “Mani” ganha a África do norte com Marcos de Menfis e Fausto de Milevo (ao qual se opõe Agostinho, que renegou os maníqueus, do qual não pôde penetrar os aspectos interiores).O maneísmo, em sua própria essência, é anterior ao espírito dogmático do Concílio de Nicéia.“Pode-se considerar o maneísmo aquitano, ou occitano (denominado mais tarde albigense), como uma evolução nova do cristianismo e como seu desabrochar definitivo, sua sutilização suprema e celestial.”
“Se o judaísmo é a religião do Pai (de Jeová), se o cristianismo é a religião do Filho (de Jesus), então o catarismo é a religião do Espírito (do Paracleto).Como o cristianismo se distingue do judaísmo pelo Verbo, o catarismo se distingue do cristianismo eclesiástico pelo Paracleto.”Segundo o cristianismo das igrejas, o gênero humano foi salvo pelo Filho. Acreditar nele traz a salvação.

No catarismo, a salvação provém do Paracleto, do Consolador. É ele, o Espírito Santo, que desperta a alma de seu sono ébrio na matéria e lhe dá o anseio pelo absoluto, por Deus.Ouvir a Palavra é, então, saber-se portador da centelha-de-luz do Deus verdadeiro e fazê-la crescer como a força do Filho.O catarismo, que reivindicava como sua Mãe a igreja cristã, ignorava a sinagoga judaica, que por sua vez rejeitava a Igreja cristã como sendo muito intelectual. A Igreja cristã, que se tornou católica, rejeitava a Igreja cátara como sendo muito espiritual, muito idealista...
De tal forma que a Igreja cátara, então legítima pretendente ao título de cristã, deveria, após esse desenvolvimento, sustentar o nome de “paracletiana”.
Ela é a “Igreja da Consolação”, pura e purificadora, santa e santificante, consoladora e consolada no exílio do mundo.Ela é a Consolação do Universo: ela desdenha o mundo, abomina o sangue, extingue o inferno, converte Satã, proclama a salvação universal. “Por essa sólida evolução, o catarismo pode ser considerado uma nova religião que escapou da Igreja como uma borboleta da crisálida. Essa transformação, que foi seu brilhante infortúnio no passado, deverá ser no futuro seu glorioso epitáfio.”Os primeiros “Amigos de Deus” formaram uma fraternidade igualitária, professando o sacerdócio universal. Mais tarde, as perseguições levaram os cátaros a se organizar; três degraus se formaram na igualdade primitiva: o noviciado, a perfeição e o sacerdócio. O diaconato fora elevado a episcopado e do episcopado desabrocharia o patriarcado.
A religião do Espírito consolador e purificador, tão antiga quanto a dor e o mal, que queria curar as feridas, remonta aos primeiros dias do mundo.Antes de Cristo, ela projetou seus raios sobre os brâmanes da Índia, os magos da Pérsia, os essênios do judaísmo, os gregos, sobre Pitágoras e Platão.Depois de Cristo, entre todos os gnósticos, está mais voltada ao pensamento de Platão e à moral de Pitágoras, conservando entretanto, sua pura radiação primordial no Oriente: um raio celeste e uma lâmpada grega.Aí termina sua hierarquia que, daí por diante, conserva o monopólio do patriarcado. Essa aristocracia patriarcal jamais tomou o aspecto de uma monarquia teocrática. Ela não serviu, em momento algum, aos sonhos de Manes, que envolvia o mundo todo em seu projeto de teocracia universal.
O catarismo pireneu foi, em sua essência, espiritualista demais para personificar o Paracleto em um homem: seu papa era o Espírito; seu Vaticano, o céu! Nenhuma palavra velada na Bíblia, nenhuma escritura acorrentada no Templo.
Nenhum Deus cativo no tabernáculo.
Nenhum sacerdote carcereiro de Deus.
Nenhum papa zelador do céu e do inferno.
Nenhuma servidão ou morte do Espírito!

Deus salvou duas vezes o mundo do materialismo e da corrupção, pela imensa revolução da Gnosis: os místicos, os gnósticos, os solitários dos desertos, os grandes pensadores das cavernas. Ele soergueu os cátaros, os leonistas, os espiritualistas de Narbone e da Calábria contra as crenças e dogmas não racionais.Essas eram as igrejas proscritas de São João e São Paulo.Eram os templários, os cátaros e mais tarde os rosacruzes, irmãos da Fraternidade Universal, que elevariam o templo do Espírito: a grande ‘Mani da Aquitânia. Verdadeiros pioneiros em seu tempo da Igreja do Espírito, que persistiam incansáveis em sua tarefa de “pescadores de homens”, abrindo desde a base o caminho do renascimento do Espírito, freqüentemente proscritos, perseguidos e traídos, mas jamais desencorajados.Orígenes, Marcos de Mênfis...

“Temos ainda, e após o ano 140 d.C., outros líderes espirituais: o grande Orígenes, Marcos de Mênfis (desde o ano 300), Prisciliano de Ávila, Félix de Urgel, Paulo da Armênia, Erigène da Irlanda, Lisois de Orleans. Também Nicetas de Constantinopla, que veio organizar o catarismo na região dos Pireneus em face das perseguições que ocorriam.”

O catarismo chegou ao Ocidente sob sua forma pura, com Marcos de Mênfis antes do ano 350. Seu aluno favorito, Prisciliano de Ávila, o espalhou por toda a Espanha, a Gália, a Inglaterra, a Bélgica, a Suíça, a Holanda, a Alemanha, até 382. Essa é data em que ele foi decapitado em Treves (Alemanha) por instigação de bispos católicos. Ele foi o primeiro mártir herético.Seus grandes discípulos espanhóis Elipand, arcebispo de Toledo, e Félix, bispo de Urgel (Andorra e Sabartez) que reencontramos nos caminhos que levaram Prisciliano (de 788 a 800) a Narbonne, a Ratisbonne, até Frankfurt, até Aix-la-Chapelle, continuaram sua pregação.Mais tarde, Joaquim de Flore (1132 - 1202) produziria seu “Evangelho Espiritual” que teve igualmente uma profunda influência sobre a evolução do pensamento religioso.Todos vivificaram uma corrente espiritual na qual se inspiraria o catarismo

Mestre Jesus, o Cristo - O Sermão da Montanha


Mahatma Gandhi, a Grande Alma da Índia e do Mundo, afirmou que: "se todos os livros sagrados da humanidade se perdessem, mas não O Sermão da Montanha, nada se teria perdido".

Encontramos no Sermão da Montanha o cerne dos ensinamentos do Mestre Jesus, o Cristo.

Procuremos penetrar agora na mensagem do Sermão da Montanha.
O Sermão da Montanha é demasiado extenso, cobrindo, no Evangelho de Mateus, três capítulos, para ter sido ministrado de uma só vez pelo Mestre Jesus.

Existem quatro blocos bastante delineados:

As Bem-Aventuranças, a continuação dos Ensinamentos nesse capítulo V, depois mais apresentações no capítulo VI e sua continuação no capítulo VII. Creio que aquelas instruções devem ter sido ministradas pelo Mestre Jesus ao longo de três ou mais encontros com seus discípulos, mas, para fins didáticos, o autor do Evangelho segundo Mateus preferiu apresentá-las num só bloco.

No entanto, os outros evangelistas, principalmente, os outros sinópticos, Marcos e Lucas, espalharam a maior parte desses ensinamentos ao longo de seus evangelhos. É possível, também, que parte dos ensinamentos do Mestre que faziam parte deste conjunto que veio a ser chamado de Sermão da Montanha, tenha sido perdida. Isto fica claro quando observamos certas descontinuidades no tema que está sendo apresentado, principalmente nos capítulos seis e sete de Mateus.


Um ponto que o cristão moderno raramente leva em consideração ao ler a Bíblia, é o fato de Jesus ter sido um pregador itinerante. Por isso, é muito provável que, ao visitar diferentes comunidades, ele tenha contado algumas parábolas e apresentado seus ensinamentos principais várias vezes.

Como sabemos, raramente contamos a mesma estória exatamente da mesma forma, com as mesmas palavras, ao repeti-la duas ou mais vezes. Portanto, parte das diferenças encontradas nas apresentações dos Evangelhos deve-se ao fato dos evangelistas provavelmente estarem se referindo a apresentação dos mesmos ensinamentos em diferentes ocasiões.


Vamos nos ater à versão do Sermão da Montanha em Mateus. Nele, Jesus oferece, em primeiro lugar, algumas instruções éticas para uma vida harmônica e mais feliz nesse mundo. Em segundo lugar, aos discípulos, oferece instruções espirituais para mudanças interiores que são necessárias na vida espiritual. Essas mudanças interiores eram chamadas, pelos cristãos primitivos, de metanóia, uma mudança interior na maneira de pensar.


Examinemos a primeira passagem do Sermão da Montanha que começa:


“Vendo Ele as multidões subiu a montanha. Ao sentar-se, aproximaram-se Dele os seus discípulos e pôs-se a falar e os ensinava dizendo:”


Comecemos aí: “vendo Ele as multidões”. Meus amigos, todas as escrituras sagradas devem ser lidas com muita atenção. Podemos imaginar que um observador do evento, ao descrever o fato fosse dizer: vendo a multidão que o estava acompanhado, mas não, as multidões. Nesse caso, o que está sendo relatado aqui é que o Mestre se compadeceu ao ver, com a sua visão espiritual, o sofrimento das multidões no espaço e no tempo, aquela que o seguia e outras nos mais variados lugares da terra, no seu tempo e ao longo dos séculos.

Sabendo que as multidões eram prisioneiras da ignorância, chama a si seus discípulos e passa a ensiná-los para que estes, por sua vez, possam ajudar a dissipar a escuridão que oprime essas multidões.
Procuremos examinar o texto em seus detalhes. É dito que Ele subiu à montanha. Subir à montanha, na linguagem sagrada significa elevar-se a um estado mais alto de consciência. Então, ele chamou a si os discípulos e, alçando-se a um nível mais elevado de consciência, expandiu a consciência, ou seja, a percepção de seus discípulos, para então ministrar esses ensinamentos profundos e avançados.


Mas por que Ele estava ministrando os ensinamentos a seus discípulos e não à multidão ou multidões sofredoras? A razão é bem simples. Os Mestres precisam ensinar de acordo com a capacidade daqueles que estão ouvindo. E os Mestres sabem que as pessoas estão em níveis evolutivos diferentes e são os discípulos, aqueles que já tiveram uma certa iniciação, que serão capazes de entender, de acompanhar e de se beneficiar dos ensinamentos mais elevados. Deve ficar bem claro que a iluminação não é algo homogêneo. Sabemos que tanto no plano físico como no espiritual a iluminação ocorre em diferentes intensidades. Sabemos que existem lâmpadas que dão uma intensidade de luz de 40, 60, 100 ou mais watts. Portanto, no mundo físico a iluminação ocorre em diferentes intensidades. Podemos conceber que os Mestres, seus discípulos e as pessoas em geral, também têm diferentes níveis de potencial iluminação interior.


Mas por que a diferença na intensidade da luz interior levou o Mestre a preparar seus discípulos em vez de atender diretamente a necessidade de luz, de entendimento das multidões? Usando o sistema de energia elétrica como exemplo, sabemos que a energia elétrica é gerada em altíssima voltagem, com uma potência muito forte, e que, ao sair do gerador é preciso um transformador para abaixar aquela tensão a um nível que possa ser transmitida pela rede.

Muito bem. Um Mestre, um Mensageiro do Alto, seria como um transformador da mais alta potência recebendo a energia divina diretamente da fonte e abaixando-a para um nível que possa ser transmitida pela rede existente. Então, essa energia é transmitida e captada pelos discípulos que, por sua vez, agem como transformadores, abaixando outra vez a energia para que ela possa chegar ao consumidor final, num nível que seja compatível com seus equipamentos. É por isso que os Mestres dedicam a maior parte da sua atenção, de seu ministério, para aqueles que o seguem, para seus discípulos. Fazem isto porque sabem que eles têm a capacidade para receber e o comprometimento para transmitir aquela energia da sabedoria para as multidões.


Passando agora ao conteúdo da mensagem do Mestre, vemos que em todo seu ministério, e no Sermão da Montanha, em particular, Jesus está procurando transmitir um conjunto de ensinamentos que se fundamentam em quatro pontos principais.
  • O primeiro é que o objetivo de toda a vida espiritual é alcançar o reino dos céus que, como vimos em outras ocasiões, significa voltar ao estado inicial de união com Deus.
  • O segundo ponto é que para isso, o homem deve mudar de dentro para fora. Já que ele está imerso na materialidade, está tolhido por seus condicionamentos insensatos, então ele precisa se transformar. 
  • O terceiro ponto é que todas as ações do homem na terra são regidas por uma grande lei conhecida como a lei de causa e efeito.
  • E o quarto ponto, finalmente, é que existe um grande princípio de coesão no universo. Esse princípio de coesão, de união, é conhecido por nós como Amor. Esse princípio faz com que todas as barreiras possam ser transpostas, todos os impedimentos sejam dissolvidos para a reunião, para a união final do homem com Deus.
Esses quatro princípios são apresentados de diferentes formas, sob diferentes ângulos, por Jesus, ao longo do Sermão da Montanha.As Bem-Aventuranças...As Bem-Aventuranças são ideais ou virtudes que devem ser alcançadas pelos discípulos que decidem seguir a senda que leva à iluminação plena. Representam a essência espiritual dos ensinamentos. E todas elas começam com “bem-aventurados”.
Bem-aventurado é aquele que alcançou um estado de felicidade tão profundo que, na pratica, não pode ser descrito. E esse estado de bem-aventurança é alcançado, não na nossa consciência usual da vida terrena, mas quando experimentamos a união com o Supremo Bem. Em outras palavras, ele torna-se uma realidade quando o discípulo alcança um nível suficientemente alto de consciência em que se vê unido a Deus. Então, nesse momento, ele experimenta essa imensa felicidade que é a bem-aventurança. Portanto, as bem-aventuranças são as qualidades que possibilitam os discípulos alcançar esses estados de consciência

Verificamos estes ideais são primeiramente indicados nas bem-aventuranças e apresentados em mais detalhes no restante do texto do Sermão da Montanha.
Começando, então, com a primeira bem-aventurança:

“Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o reino dos céus”.

Pobres em espírito no sentido ético, que tem a ver com a personalidade, é o desapego das coisas materiais, desapego também dos pensamentos e de idéias pré-concebidas. Nesse caso, o discípulo, o eu torna-se desapegado. Ainda há dualidade, ou seja, é uma pessoa que está se desapegando. Mas, o objetivo mais elevado dos ensinamentos é um sentido espiritual. E no sentido espiritual, o pobre em espírito é aquele que tem total ausência de egoísmo e orgulho, que foram substituídos pela humildade e modéstia. Então, para estes, verdadeiramente pobres em espírito, não existe mais a consciência de um eu separado. E, sendo assim, não existindo mais a consciência de um eu separado, realizou-se a união e foi alcançada a bem-aventurança. Vamos verificar ao longo de todos os evangelhos que o termo reino dos céus refere-se a um estado de consciência elevado, culminando com a unidade.

“Bem-aventurados os mansos porque herdarão a terra”.

Prestem atenção: Os mansos herdando a terra. Numa primeira leitura, não nos parece muito convincente essa bem-aventurança. Em nossa experiência no mundo, verificamos seguidamente que são os agressivos, os prepotentes que conseguem as coisas que querem. Então, como Jesus estaria dizendo que os mansos vão levar a terra, já que a nossa experiência mostra que são os fortes, os agressivos, que ganham as coisas do mundo. Será que Jesus estava errado ou será que há um sentido espiritual por trás disso?

Em primeiro lugar, não devemos pensar no conceito de manso, como normalmente prevalece em nossa sociedade, como sendo uma pessoa um pouco fraca, até mesmo covarde, que prefere se esconder, se encolher, em vez de lutar por seus direitos. Não. O discípulo é sempre uma pessoa forte interiormente, forte a ponto de ser capaz de enfrentar situações para manter uma conduta previamente auto-estabelecida. Então, o manso a que Jesus se referia é aquele que alcançou a ausência de eu, é aquele iluminado que entende que deve conformar-se à vontade de Deus. Ele expressa total inofensividade em sua vida. Por isso ele é manso. E, logicamente, num sentido espiritual, quem é inofensivo, quem se conforma com a vontade de Deus, pode ser confiado pelo Supremo Bem com o poder sobre as coisas do mundo, o poder sobre a manifestação. Então, nesse sentido, os mansos herdam a terra.

“Bem-aventurados os aflitos porque serão consolados”.

Algumas versões da Bíblia traduzem esse versículo como, “bem-aventurados os que choram”.A idéia é praticamente a mesma. Não se trata aqui meramente da dor. A dor, pode ser uma grande instrutora, mas certamente, não é uma fonte de bem-aventurança. Então, não se trata de uma aflição pela perda dos bens, da saúde ou de um ser amado, que traz a consolação a que se refere esta bem-aventurança, a consolação do Supremo Bem. Porque somente o Supremo Bem poderia trazer bem-aventurança. Aqueles que se afligem pelas coisas do mundo, expressam seu apego pelo que foi perdido. E geralmente expressam esse apego com ressentimentos e mágoas, o que não é atitude espiritual. Verdadeiramente, a aflição que traz o consolo da bem-aventurança é a aflição pela ausência da graça divina.

O homem comum chora pela perda das coisas desse mundo, o homem espiritual se aflige pela perda do estado original de união com Deus. Nesse caso, o discípulo sente que perdeu aquilo que tinha de mais precioso: o deleite constante da Presença de Deus. A criação é, na verdade, uma saída do seio de Deus. Portanto, sua alma, tendo despertado para a realidade última, anseia voltar para o seio de Deus, para a união com o Pai Celestial. Esta é a aflição que faz com que a pessoa seja consolada com a bem-aventurança.

“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados”.

A leitura literal deste aforismo pode levar a enganos, pois muitos podem imaginar que Jesus estava ensinando que o homem não precisa fazer força, já que seus anseios serão atendidos por Deus. Ora, isso levaria as pessoas que assim acreditassem, a buscar uma situação de “sombra e água fresca”, como expressa o ditado popular. Nesse caso, não fariam força, não se engajariam na vida do mundo, tornando-se indolentes, verdadeiros parasitas para a família e para a sociedade. Jesus não se referia à justiça desse mundo. No sentido espiritual, o que Jesus se referia como justiça era o conhecimento divino. Os que têm fome e sede do conhecimento divino, sabem que devem buscar esse conhecimento avidamente, bater insistentemente à porta e pedir a graça de todo o coração.

São esses indivíduos que são referidos, mais adiante na Bíblia, como sendo aqueles que tomam o reino do céu pela força. Esses ativistas serão obviamente, saciados. Quando examinamos mais atentamente vemos que com o conhecimento divino, percebemos a divina justiça. A suprema justiça, estipula que a graça seja concedida, na medida em que as pessoas se esforçam para obtê-la. E ela só pode ser obtida pela mudança interior; sempre! É isso que foi expresso como fome e sede de justiça. Então, quanto mais a pessoa se engaja na busca do conhecimento divino, quanto mais se esforça, quanto mais se engaja, maiores as chances de resultados favoráveis. No início da busca interior, a graça vem como inspiração e força para continuar o processo de mudança interior. Quando essa ocorre, chega finalmente o momento em que a graça se manifesta como a presença de Deus.

“Bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia”.

Teremos aqui, mais uma vez, outra maneira de apresentar a lei de causa e efeito. Quem é misericordioso alcança a misericórdia. Como dissemos inicialmente, os quatro temas fundamentais serão reiterados de diferentes maneiras, pois esta era a didática do Mestre, de fazer com que estes conceitos bem diferentes daqueles pelos quais o homem do mundo vive, fossem entendidos, absorvidos e, finalmente, passassem a ser também vivenciados.

O discípulo iluminado está consciente da unidade e sente naturalmente uma profunda compaixão por todos os seres. Assim, em virtude da grande lei, ele alcança a compaixão divina. Esse aforismo oferece uma orientação prática para a vida do discípulo e também mais um exemplo da aplicação da lei de causa e efeito. A importância desta lei é tão fundamental que o Mestre menciona vários outros exemplos de sua aplicação mais adiante no Sermão da Montanha.

“Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus”.

A recompensa indicada para os puros de coração é ver a Deus. Essa é a primeira realização dos místicos que alcançam o reino dos céus. Aqueles que leram algo sobre a vida dos místicos, não só da tradição cristã, mas das tradições orientais ou mesmo dos sufis, sabem que uma das primeiras realizações dos místicos é alcançar visões interiores que eles interpretam como sendo ver a Deus. A pureza referida não é somente uma pureza moral. O sentido espiritual de pureza de coração é a completa libertação do desejo pessoal. Quando há expectativa de retorno, em que a pessoa faz alguma coisa para obter algo, existe impureza de coração. Trabalhar para obter uma vantagem é uma atitude natural em nosso mundo, mas não uma atitude espiritual. No texto desta bem-aventurança está implícito, também, o estado de união com Deus. Isto porque somente aqueles que se desapegaram inteiramente do eu, conseguem alcançar esta atitude de verdadeira pureza de coração.

“Bem-aventurados os que promovem a paz porque serão chamados filhos de Deus”.

A paz deve ser promovida tanto no interior como no exterior. Primeiramente, a paz aparece como decorrência da transformação do indivíduo, aguçando sua mente e despertando sua intuição. Com isso ele passa a entender as leis do universo, as leis da manifestação que regem a vida do homem. O resultado deste entendimento é uma aceitação da vida como ela é e não como gostaríamos que ela fosse. Com essa aceitação vem uma profunda paz. Uma vez alcançada essa paz interior, ela naturalmente se reflete na vida exterior do indivíduo, que não mais entretém motivações, pensamentos, palavras e, principalmente, ações egoístas ou cruéis. Ele, então, está interiormente em paz e transmite esta paz àqueles que o cercam. Portanto, aqueles que estabelecem a harmonia interior e transferem essa harmonia para o seu exterior, estão agindo como Deus espera de seus filhos. Conseqüentemente, eles serão chamados filhos de Deus. Essa é sem dúvida uma grande realização porque na nossa tradição, quem é chamado de Filho de Deus? Jesus, o Cristo é o filho de Deus. Então, aqueles que são os pacíficos, os que promovem a paz, estão expressando Cristo em sua vida diária, por isso são chamados de Filhos de Deus.

“Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça porque deles é o reino dos céus”.

Vários autores sugerem que esta bem-aventurança continua com o texto da próxima. Como concordo com esta avaliação, vou fazer algumas apreciações das duas em conjunto. Seriam então oito bem-aventuranças em seu total.

“Bem-aventurados sois quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por causa de Mim. Alegrai-vos e regozijai-vos porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois foi assim que perseguiram os Profetas que vieram antes de vós.”

Perseguição gera sofrimento. Sofrimento em si não salva ninguém. O que salva é a compreensão que o sofrimento pode propiciar. Isto é muito importante. Existe uma atitude quase masoquista com relação ao sofrimento em nossa tradição. O sofrimento é um instrutor, mas não leva a nenhuma bem-aventurança. As qualidades de coragem, perseverança e destemor por parte daqueles que sofrem perseguição por uma causa nobre, referidas na bem-aventurança como “por causa da justiça” e “por causa de mim” indicam que esses iluminados percebem que a verdade vale mais do que a sua vida passageira. Então o auto-sacrifício e o destemor abrem as portas do reino.

Quem busca a verdade vive de forma diferente das massas. Todos nós percebemos que existem algumas pessoas que são, vamos dizer, diferentes, e quando as observamos com atenção, verificamos que elas têm um comportamento, uma ética, e certos ideais de vida que são bastante diferentes das massas. Por isso mesmo, as massas têm uma certa desconfiança daqueles que são diferentes. Há sempre uma pressão das massas para o conformismo. Aqueles que são diferentes são tratados com desconfiança e, muitas vezes, são perseguidos. Foi isso que aconteceu com Jesus e com quase todas as grandes almas que procuram divulgar mensagens transformadoras. Esses reformadores são invariavelmente considerados subversivos pelo regime vigente e, quase sempre, são perseguidos.

Tendo concluído essas apreciações preliminares sobre as bem-aventuranças, vamos começar agora a examinar as instruções mais detalhadas. Deve ficar claro, que são algumas apreciações superficiais que não refletem a profundidade e alcance dos ensinamentos do Mestre. Os aforismos contidos nos 3 capítulos que integram o Sermão da Montanha oferecem uma imensa riqueza que poderia ser considerada e estudada muito mais longamente. O objetivo é de estimular esta leitura atenta, essa meditação, esse aprofundamento do legado de Jesus.

Mais uma vez, Jesus dirige-se a seus discípulos e diz:

“Vós sois o sal da Terra. Ora, se o sal se torna insosso, com o que o salgaremos? Para nada mais serve se não para ser lançado fora e pisado pelos homens”.

“Vós sois a luz do mundo. Não se deve esconder uma cidade situada sobre um monte, nem se acende uma lâmpada e se coloca debaixo do alqueire, mas no candelabro e assim ela brilha para todos os que estão na casa. Brilhe do mesmo modo a vossa luz diante dos homens para que vendo as vossas boas obras eles glorifiquem o vosso Pai que está nos céus”.

À medida que estudamos a Bíblia, verificamos que a linguagem de Jesus é sempre forte e vívida, procurando evocar imagens que possam ser compreendidas por aqueles que ouviam a sua palavra, principalmente, naquele tempo.

Mestre Jesus, o Cristo tendo indicado os grandes ideais do discipulado, passa a detalhar a postura esperada de seus discípulos. Os discípulos de todos os tempos são referidos como o sal da terra e a luz do mundo. Isso porque eles estão sintonizados com a sua essência última e essa é tratada por Jesus como sendo o sal que salga as massas, como sendo a luz que dissipa a escuridão. Enquanto o desenvolvimento do discípulo continua, o sal conserva o seu sabor. Porém, quando o homem externo perde ou renuncia o contato com o eu interior, o sal perde o seu sabor e, alegoricamente, para nada mais serve.

Vemos, portanto, que o discípulo é treinado a conhecer, por experiência direta, a manifestação da luz espiritual como o núcleo do seu ser. Com isso passa a saber que ele é luz. Esse tipo de linguagem calava fundo nos seus discípulos, porque a maior parte deles já tinha desenvolvido a visão espiritual ao nível de, pelo menos, poder ver a sua luz interior. Porque, como dissemos anteriormente, a iluminação ocorre em diferentes níveis. E num dos primeiros níveis, o discípulo passa a perceber a sua essência interior como luz. Jesus diz que não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte. A cidade refere-se à consciência do discípulo que, quando em estado elevado, ou seja, construída, edificada sobre um monte, não pode ser escondida. Portanto, o discípulo que alcançou a iluminação deve, através do seu exemplo, fazer com que a sua luz brilhe para o benefício de toda a humanidade, glorificando desta forma, o Pai que está nos céus.
O aforismo seguinte é bastante conhecido e merece a nossa atenção:

“Não penseis que vim revogar a lei e os profetas. Não vim revogá-los mas dar-lhes pleno cumprimento. Porque em verdade vos digo que até que passem o céu e a terra não será omitido nem uma só vírgula da lei sem que tudo seja realizado. Aquele, portanto, que violar um só desses menores mandamentos e ensinar os homens a fazerem o mesmo, será chamado menor no reino do céu. Aquele porém, que os praticar e os ensinar, esse será chamado grande no reino dos céus. Com efeito, eu vos asseguro que se a vossa justiça não exceder a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no reino dos céus.”

Mestre Jesus, o Cristo diz aqui que a verdadeira tradição espiritual de seu povo, conhecida como a lei mosaica, não devia nem podia ser destruída. Sua missão era, porém, de liberar seu povo das incrustações limitadoras introduzidas na lei. Seus ensinamentos mostram que a vida espiritual demanda mais que a mera obediência a preceitos externos. Da simplicidade inicial dos dez mandamentos trazidos por Moisés do Monte Sinai, com o tempo, a Lei Mosaica foi expandida e acrescida até chegar aos seiscentos e trezes preceitos então conhecidos: “não faça isso, não faça aquilo, faça isso, faça aquilo outro”.

A vida dos judeus estava inteiramente prevista e a atitude esperada deles era obedecer, ou seja, fazer aquilo que estava sendo prescrito. Jesus, então, alerta seus discípulos, que é preciso muito mais do que meramente obedecer a preceitos externos. Eles devem desenvolver o discernimento e a compaixão. Porque aqueles que têm discernimento e compaixão, saberão retirar do âmago do seu ser, tudo aquilo que deve ser feito ou que não deve ser feito, em cada ocasião.

Tendo esclarecido que sua missão era dar “pleno cumprimento à Lei”, Mestre Jesus passa a aprofundar o entendimento da Lei. Ele mostra que não basta cercear a ação exterior. Para ser justo é preciso uma reta atitude interior. Os pensamentos e a motivação das pessoas devem estar de acordo com o espírito da lei. Precisamos estar atentos à linguagem de Jesus, que às vezes parece estranha para nós. No texto, é mencionado que não será omitida nem uma só vírgula da lei. Para seu povo que estava ouvindo em aramaico, uma língua diferente do hebraico mas que, não tendo alfabeto próprio, usava o alfabeto judaico, o “i” do nosso texto representava um “iod”, a menor letra no alfabeto hebraico. É um pequenino “i”, realmente muito pequeno. E as vírgulas mencionadas eram os sinais massoréticos, pequenos pontos ou vírgulas que dão a acentuação e a divisão das sílabas nas frases, pois as palavras em hebraico, normalmente não têm vogais, são só consoantes. Para seus ouvintes ficava claro que não seria omitido o menor detalhe da lei. Mas a que lei Jesus estava se referindo? Seriam os seiscentos e treze preceitos judaicos conhecidos então, ou a verdadeira lei espiritual que ele estava procurando resgatar? Com a continuação da pregação de Jesus fica claro que a lei em pauta era a lei divina sem os acréscimos inseridos pelos escribas.

Temos, também uma outra expressão nessa passagem que merece a nossa atenção. É a indicação que quem violar um dos menores mandamentos será chamado “menor” no reino dos céus. Porém, foi dito que o reino dos céus é um estado de consciência de união com Deus. Então, quem está num estado de consciência de união com Deus vai cometer deslizes da lei espiritual? Esse ponto merece ser considerado ainda que de forma um tanto superficial.Da mesma forma como dissemos que existem diferentes níveis de iluminação, o estado do “reino” também ocorre em diferentes níveis. O primeiro nível de união é aquele em que a consciência de vigília do homem, a consciência da personalidade que está centrada na mente concreta, consegue unir-se à mente abstrata. Com isso ocorre uma enorme expansão de consciência. É a consciência advinda da união do homem externo com o homem interno. Esse é o primeiro nível de união e é, na verdade, um pré-requisito para a Crístificação. A meu ver, essa realização expressa o nível de consciência que deve ser alcançado para que um discípulo seja aceito pelo mestre.

Temos um outro nível de união. Quando o ser exterior e o interior já estão unidos, essa união pode ser aprofundada pelo nascimento do Cristo interior. O que está sendo referido é o nascimento da intuição, representado na tradição cristã como o nascimento do Cristo. Nas tradições esotéricas, essa etapa é referida como a primeira iniciação. Um segundo nível, um nível mais elevado de união é alcançado, quando o Cristo interior se expande e é conferida a segunda iniciação. Quando o Cristo alcança a sua plenitude a pessoa é tida como realmente iluminada. Na tradição esotérica, seria alcançada a terceira iniciação.

Mas a jornada da alma ainda não terminou: um novo nível de união pode ser alcançado, a união com o espírito universal. Alcança-se, então, a redenção. Na tradição esotérica, equivaleria à quarta iniciação. Finalmente, o indivíduo alcança a meta final, a união com o Pai, Deus não manifestado, referido por alguns autores como a mônada. Na tradição cristã a alma é alçada aos céus e senta-se a direita de Deus Pai todo poderoso. Alcança-se a quinta iniciação. E é dito que existem iniciações ainda mais elevadas que expressam uniões inconcebivelmente mais sublimes.

Então, com esse primeiro entendimento dos diferentes níveis de união, podemos entender por que, no primeiro nível de estado de consciência do reino, o menor no reino dos céus, o discípulo ainda não alcançou a perfeição, ainda pode e certamente cometerá alguns deslizes, os menores dos mandamentos. Mas aquele que praticar todos os mandamentos, aquele que alcançar a perfeição, que alcançar as mais altas iniciações, os mais altos níveis de união com Deus, esse será chamado “grande” no reino dos céus.

Mestre Jesus, o Cristo também nos alerta para o que era chamado “a justiça dos escribas e fariseus”. Os escribas e fariseus eram constantemente castigados nas elocuções de Jesus, como sendo os paradigmas da hipocrisia e da falsidade. E por quê era isso? Por que Jesus usava esse termo tão forte? Porque calava fundo no coração daqueles que o ouviam, porque eles sabiam que os escribas, os fariseus, os doutores da lei os oprimiam com a insistência na observância dos mínimos detalhes daqueles seiscentos e treze preceitos. Os fariseus se vangloriavam não só de conhecê-los mas de obedecê-los. Só que obedeciam muitas vezes sem discernimento e, o que era pior, sem compaixão. Por isso, em várias passagens bíblicas, Jesus é criticado pelos escribas e fariseus, pelos doutores da lei, por fazer alguma coisa que ia contra a lei, como por exemplo, curar no sábado. Naquelas ocasiões, Jesus usava de linguagem forte para chamar atenção do povo que a compaixão deve guiar todas nossas ações. Por isso, Jesus insistia que seus discípulos deviam desenvolver o discernimento juntamente com a compaixão para determinar, em cada circunstância, o comportamento apropriado.

“Ouviste o que foi dito aos antigos: Não matarás. Aquele que matar terá de responder no tribunal. Eu porém, vos digo. Todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, terá que responder no tribunal. Aquele que chamar ao seu irmão “cretino” estará sujeito ao julgamento do Sinédrio. Aquele que lhe chamar “louco” terá de responder na geena de fogo. Portanto, se estiveres para trazer a tua oferta ou oferenda ao altar e ali te lembrares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferenda ali diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão e depois virás apresentar a tua oferta. Assume logo uma atitude conciliadora com o teu adversário enquanto estás com ele no caminho para não acontecer que o adversário te entregue ao juiz e o juiz ao oficial de justiça e assim sejas lançado na prisão. Em verdade vos digo, dali não sairás enquanto não pagares o último centavo”.

A velha lei, a lei mosaica, tratando de um estado anterior e inferior da consciência humana, preocupava-se com as coisas externas, as ações. Jesus vem aperfeiçoar a lei, chamando a atenção para seus aspectos mais internos. Assim, a agressão verbal e os sentimentos de cólera também são condenados. A essência da mensagem de Jesus é que o homem interno deve ser mudado. E não que o homem simplesmente deve se abster de certas ações externas. Esse mandamento, passa a expressar o respeito à vida no seu sentido mais amplo. Ele indica o ideal que é expresso nas tradições orientais como ahimsa, a inofensividade em ações, palavras, emoções e pensamentos.

Voltemos agora nossa atenção para a expressão: “aquele que chamar o seu irmão de louco terá que responder na geena de fogo”. Isso parece um castigo demasiado pesado. Vocês acham que tal castigo, por uma mera palavra insensata, é compatível com a compaixão divina? Ter que responder na geena de fogo, no inferno, pois esta era a expressão que os judeus usavam para representar o que nós, cristãos, chamamos de inferno. No entanto, assim como o reino do céu é um estado de consciência, a geena de fogo, o inferno, também é um estado de consciência, não é um lugar lá no fundo da terra onde o fogo queima por toda a eternidade. Na verdade é um estado de consciência em contraste com o reino dos céus: o reino dos céus é um estado de consciência de união que leva à bem-aventurança. O inferno é um estado de consciência de desunião, de separatividade que leva ao sofrimento. Então, é nesse sentido que devemos entender que aqueles que xingam os seus irmãos, que demonstram cólera, estão acionando forças que vão reverter contra eles, através da lei de causa e efeito, causando-lhes sofrimentos psíquicos compatíveis com a ofensa causada. Então o castigo é perfeitamente linear, estando de acordo com a justiça divina.

Verificamos também, nessa passagem, a ênfase que Mestre Jesus dá ao estado de consciência interior. "Quando alguém for levar uma oferenda ao altar e se lembrar que um irmão tem alguma coisa contra ele, deve voltar e procurar se reconciliar com o seu irmão." Os judeus davam muita ênfase aos atos de adoração, tanto nas sinagogas como no templo. Nos sábados e feriados, deviam oferecer sacrifícios, levando oferendas como gado, ovelhas, pombas, incenso, parte de sua colheita, o famoso dízimo. Portanto, levar oferendas ao altar estava muito entranhado na cultura judaica, era o elemento central do ritual de devoção. No entanto, Jesus chama atenção que se alguém estiver engajado em algum ato de devoção externa mas se lembrar que algum irmão tem algo contra si, muito mais importante do que o ato de devoção externa é a atitude de harmonia interna, de reconciliação, de amor.

“Ouviste o que foi dito: Não cometerás adultério. Eu porém vos digo, todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso, já cometeu adultério com ela em seu coração.”

Obviamente, este ensinamento também é válido para as mulheres que, em nosso mundo atual passaram a olhar para os homens com olhar libidinoso. Sabemos que o pecado não é meramente uma ação externa. Tudo aquilo que é feito no exterior começou com uma intenção, alimentada por pensamentos. Mestre Jesus está nos alertando para a necessidade de auto-domínio e de controle mental das paixões.

Esse ponto nos faz lembrar a questão da continência que é mencionada em várias tradições espirituais. Devemos ser muito cautelosos com essas prescrições. A continência certamente será uma prescrição que o discípulo avançado terá que acatar quando atingir um determinado patamar e estiver pronto para certas práticas que demandam o uso de forças interiores, como o fogo da kundalini. Nesse estágio a castidade será necessária. Antes disso será uma questão de foro íntimo de cada discípulo, sendo o mais importante a atitude sexual correta. O discípulo que está comprometido com a vida espiritual sabe o que é uma vida sexual correta. A continência, que é importantíssima para os discípulos avançados, está relacionada com outra passagem que se encontra mais adiante no evangelho de Mateus, que diz: “Há eunucos que nasceram assim; há eunucos que foram feitos eunucos pelos homens e há eunucos que se fizeram eunucos por causa do reino dos céus.”

“Caso o teu olho direito te leve a pecar, arranque-o e lance-o para longe de ti, pois é preferível que se perca um dos teus membros do que todo o teu corpo seja lançado na geena. Caso a tua mão direita te leve a pecar, corta-a e lança-a para longe de ti, pois é preferível que se perca um dos teus membros do que todo o teu corpo vá para a geena”.

Mestre Jesus, obviamente, estava chamando a atenção para a integridade da alma que tem que ser resguardada em todas ocasiões. E ele sempre usava linguagem metafórica que tem que ser entendida no seu sentido simbólico. Nenhum, absolutamente nenhum verdadeiro instrutor espiritual vai recomendar a auto-mutilação como método para a purificação. Logicamente então, a linguagem é simbólica. Jesus sempre nos mostra que mais importante do que a atitude externa, é a atitude interior. E o que condiciona a atitude interior? É a atitude da mente. Então, são os pensamentos maus, são as visões distorcidas, são as atitudes arraigadas, são aqueles hábitos nocivos que precisam ser arrancados. E é exatamente para isso que Jesus está chamando a atenção de seus discípulos ao usar exemplos exteriores como símbolos de coisas interiores. Se quiserem alcançar o estado de consciência do Reino, o estado de bem-aventurança de união com Deus, cortem, arranquem de dentro de si tudo aquilo que distorce a sua visão de mundo, tudo aquilo que compromete seu comportamento no mundo.

O aforismo a seguir, fala sobre o divórcio. Para minha satisfação, verifiquei que o grande estudioso da Bíblia, Geoffrey Hodson, é de opinião que as palavras do Mestre neste caso foram distorcidas, ou não foram bem registradas, pois não expressam o verdadeiro sentido de seus ensinamentos. Jesus não era um mero pregador de moral. Todos seus ensinamentos tinham uma verdade espiritual subjacente e profunda que não se encontra aqui. Portanto vamos deixa-lo de lado.

“Ouviste também o que foi dito aos antigos. Não perjurarás mas cumprirás os teus juramentos para consigo. Eu porém vos digo. Não jureis em hipótese nenhuma, nem pelo céu porque é o trono de Deus nem pela terra porque é o escabelo de seus pés, nem por Jerusalém que é a cidade do grande rei, nem jures pela tua cabeça porque não tens o poder de tornar um só cabelo branco ou preto. Seja o vosso sim, sim e o vosso não, não.”

Mestre Jesus estava atacando um hábito dos judeus da sua época de jurar. A razão para isso é que entre eles deviam dizer sempre a verdade, mas para os gentios, para os de fora, a verdade não era necessariamente obrigatória. Sabemos, no entanto, que a pessoa que em certas ocasiões costuma faltar com a verdade, ou mesmo dizer mentiras, quando querem que os outros acreditem nelas, tendem a usar juramentos na tentativa de que os outros acreditem nelas. Jesus vai ao âmago da questão condenando esse mau hábito, dizendo que devemos ter uma atitude coerente. O verdadeiro discípulo é aquele que está em busca da verdade. E se são buscadores da verdade, devem viver em consonância com a verdade. Por isso, Jesus disse que o nosso sim deve ser sim, o nosso não deve ser não e não devemos jurar em hipótese alguma, por coisa nenhuma.
Chegamos agora a um de seus ensinamentos mais difíceis.

“Ouviste o que foi dito: olho por olho e dente por dente (A lei de Talião). Eu porém vos digo: não resistais ao mal. Antes, àquele que te fere na face direita, oferece-lhe também a esquerda. E àquele que quer pleitear contigo para tomar-te a túnica, deixa-lhe também a veste. E se alguém te obrigar a andar uma milha, caminha com ele duas. Dá ao que te pede e não voltes às costas ao que te pede emprestado”.

Não resistir ao mal, não retaliar é a atitude correta para quem busca a paz e a harmonia que levam ao Reino. Reiteramos mais uma vez, Jesus está passando instruções aos seus discípulos, aos discípulos de todos os tempos. Esses discípulos devem viver em consonância com uma ética elevada para alcançar a paz interior que, por sua vez, possibilite alcançar o estado de consciência do reino. Essa mesma instrução foi dada pelo Buda e por outros grandes instrutores. Todos nós sabemos que esta instrução é de muito difícil aplicação. Quem não sabe que quando nos insultam a nossa primeira reação é de responder à altura? Quando nos agridem, normalmente a nossa primeira atitude é de revidar. Jesus nos ensina, porém, que a verdadeira atitude espiritual é de não resistir ao mal. Apesar desta instrução ser dirigida aos discípulos, alguns grandes seres conseguiram que as massas seguissem esse ensinamento. Em nossa história moderna temos os exemplos de Mahatma Ghandi, na Índia, e Martin Luther King, nos Estados Unidos, que lideraram grandes movimentos populares, com base nesse preceito de resistência pacífica, conseguindo importantes mudanças, vencendo injustiças sociais em seu tempo.

E a razão para esta orientação é que tudo o que acontece na nossa vida é o resultado da grande lei de Causa e Efeito. Por isso, devemos entender que nenhum homem é, na verdade, nosso inimigo. Todos os homens que caracterizamos como amigos e inimigos, são nossos instrutores. Alguns nos instruem de maneira agradável, outros, de forma bem mais desagradável. Mas esses também, os que agem de forma agressiva para conosco. Na verdade nada ocorre por acaso. Portanto, a maneira sábia para um discípulo terminar um ciclo de agressão é não revidando o mal com o mal. O homem comum, quando se sente agredido, fica enfurecido e revida, e com isso sofre duplamente. Primeiro porque recebeu o que lhe era devido em virtude de um débito anterior mas, ao receber a quitação, revida e cria um novo débito, e, com isso, continua preso à roda do samsara, como dizem na tradição oriental, continua prisioneiro da causa e efeito. Somente através de não retaliação é que se quebra essa roda aparentemente sem fim, que é a prisão em que o homem vive nesse mundo.

Também, sob o prisma psicológico e espiritual, não resistir ao mal é uma atitude sábia porque sabemos que, cada vez que uma energia é desencadeada, se tentarmos resisti-la, ou reprimi-la, só vamos conseguir com que essa energia adquira mais força. Então, resistir ao mal, não significa somente resistir a uma pessoa que veio nos agredir. Significa também, resistir um mau pensamento, resistir uma idéia má. Então, em vez de resistir ou reprimir as energias, pensamentos, idéias, sentimentos, emoções e tudo aquilo que sabemos ser pernicioso para nós, devemos buscar a sabedoria para transmutá-las. Isso é o que os psicólogos recomendam e que os sábios ensinam.

Um detalhe curioso da passagem, só pode ser entendido com base na tradição das tropas de ocupação romanas. É dito: “se alguém te obrigar a andar uma milha, caminha com ele duas”. Na época em que a Palestina estava sob o jugo dos romanos, os soldados romanos tinham o poder de chamar qualquer pessoa para ajudá-los a carregar suas armas e pertences. E os soldados não viajavam leves. Levavam escudos, espadas, enfim tudo o que precisavam para as suas lides guerreiras. A lei romana lhes permitia chamar qualquer pessoa para ser seu carregador por uma milha. Porém, Jesus aproveita para nos ensinar que: “se acontecer algo penoso em tua vida, aproveite essa ocasião como uma lição, como uma oportunidade de praticar o desapego, adotando a atitude de pensar no interesse dos outros e não no seu próprio conforto. Mas faça isso de bom grado, simbolicamente, caminhe duas milhas”.

“Ouviste o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu porém vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Desse modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos. Com efeito, se amais aos que vos amam que recompensas tendes? Não o fazem também os publicanos a mesma coisa? E se saudais apenas os vossos irmãos, o que fazeis de mais? Não fazem também os gentios a mesma coisa?”

Se examinarmos atentamente o Sermão da Montanha, vamos notar que há uma seqüência de idéias. As idéias vão sendo aprofundadas. O tema central é que não basta evitar um comportamento externo inapropriado, mas que devemos cultivar também uma atitude interior correta. O primeiro exemplo da necessidade de uma atitude interior correta além do comportamento exterior apropriado foi em algo bastante gritante, ou seja, não matar. Seguem os casos de não cometer adultério, não perjurar, não revidar, e agora, esta linha de ensinamentos culmina com algo especialmente sublime, amar os inimigos. A atitude interior agora é levada ao seu ápice. Amar os inimigos. O mesmo ensinamento também foi dado pelo Buda, que disse que o ódio não cessa com o ódio. O ódio só cessa com amor. A máxima abnegação e altruísmo são alcançados quando conseguimos perdoar e amar aos que nos perseguem e causam danos.

Esse ensinamento foi reformulado mais tarde na tradição cristã. Em virtude da paternidade divina e da fraternidade humana, devemos reconhecer que todas as pessoas são nossos irmãos potenciais em Cristo, incluindo aqueles que consideramos ou que nos consideram como inimigos. Por isso devemos trata-los sem ressentimento e sem hostilidade. Devemos entender que eles agem assim porque estão momentaneamente confusos e obscurecidos, pois ignoram a grande Lei.

Portanto, Mestre Jesus disse: “Amai os vossos inimigos e orai por eles”. Ele deixa subentendido que aqueles que nos perseguem estão fazendo isso porque desconhecem a operação da lei de causa e efeito. Por isso, o discípulo é instruído, em primeiro lugar a não revidar e não odiar, mas também, a compreender o seu comportamento insensato e orar para que ele possa mudar. Esse realmente é um estado muito elevado de consciência. Mestre Jesus está nos ensinando de forma prática que Deus é amor e que nada pode resistir ao poder do amor divino.

O discípulo avançado poderá valer-se desta instrução para utilizar a força do amor divino, que também é poder. Tenho certeza que sendo buscadores da verdade comprometidos com a vida espiritual, em algum momento da vida vocês chegaram a conclusão que era melhor tentar mandar energia positiva para a pessoa que estava querendo fazer mal a vocês.

Tomei a liberdade de efetuar uma pequena mudança na seqüência do texto e inserir nesse ponto o versículo Mt 7:12, que diz: “Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas.” Essa mudança pareceu-me lícita e apropriada pois, onde se encontra no Capítulo VII, esse maravilhoso ensinamento não faz parte de uma seqüência, talvez indicando que outros ensinamentos foram omitidos ou inseridos em outra parte do texto. Por outro lado, aqui calha perfeitamente bem, pois, juntamente com o último versículo do capítulo cinco oferece uma conclusão natural para esta seqüência de ensinamentos, “portanto deveis ser perfeitos como vosso Pai celeste é Perfeito.” A essência de todo ensinamento ético do Mestre Jesus é conhecida como a chave de ouro, pois oferece a orientação para todo e qualquer problema de relacionamento humano: “tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas”.

A lei de causa e efeito está sendo mais uma vez expressa. Vemos aqui que Jesus está reiterando um preceito que já era conhecido dos judeus da antiguidade. Porém, antes de Jesus este preceito era formulado de forma negativa : “Não façais aos homens o que não quereis que eles vos façam.” Era apresentado de forma negativa porque a ênfase da tradição judaica era não fazer o mal. Aqueles que estudam o budismo talvez se lembrem que, quando foi perguntado ao Buda: “Mestre, o senhor poderia resumir os seus ensinamentos?”

Buda respondeu: “Cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o bem.” Duas etapas. A primeira etapa, é não fazer o mal. Na antigüidade os judeus pregavam não fazer aos outros o que não queriam receber dos outros. Mas Jesus vai além: Aprendam a fazer o bem. Tudo aquilo que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles. Tomem a iniciativa de fazer o bem. Para os discípulos que passarem a reger suas vidas por este preceito, a conclusão do capítulo não será um ideal tão distante e quase inacessível: “portanto, deveis ser perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito.”

Vemos aqui que a impessoalidade, a universalidade e a inevitabilidade da lei de causa e efeito são mais uma vez reiteradas. E, o que de grande alento para todos os que procuram seguir o Mestre, a verdadeira obediência à Lei reduz progressivamente a distância que nos separa de nossa meta final.

O Mestre deixa bastante explícito que a deidade não é responsável pelos resultados das ações dos homens. Quem ajuda os outros, recebe ajuda. Quem fere, será ferido, e na mesma proporção. Percebemos, também, que a perfeição só poderá ser alcançada quando alcançarmos o estado de bem-aventurança conseqüente do estado de consciência da unidade. É muito difícil para nós imaginarmos o que significa “ser perfeito como o pai que está no céu é perfeito”. Podemos pensar em perfeição no nosso mundo com nossos parâmetros de realização. Nesse caso, poderíamos dizer que o Sena foi perfeito no automobilismo; o Pelé é perfeito no futebol e assim por diante. Mas a perfeição divina, como pode ser concebida? Será que ela pode ser alcançada por um homem no mundo? Enquanto pensarmos como homens do mundo, não alcançaremos a perfeição. Somente quando alcançarmos o estado de consciência de união com Cristo, quando experimentarmos a total identificação com Cristo, poderemos então agir no mundo como Cristo agiria no mundo se estivesse encarnado.

Porém, a verdade é que Cristo está encarnado em nós, ainda que em nossa consciência comum não o saibamos. No entanto, quando rompemos as barreiras da mente e acordamos para a nossa realidade última como expressões de Deus no mundo, então seremos perfeitos como o Pai celeste é perfeito e passaremos a agir no mundo com de acordo com a perfeição divina.

Gostaria de chamar atenção para a passagem:

“Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens para serdes vistos por eles. Do contrário não recebereis recompensas junto ao vosso Pai que está no céu.”

Entre os judeus, praticar a justiça referia-se, normalmente, a praticar boas obras. E as principais boas obras eram, dar esmolas, orar e jejuar. Jesus ensina que em nenhum desses casos devemos fazer boas obras para nos enaltecermos. Apresenta como primeiro exemplo os hipócritas que fazem soar trombetas quando dão esmolas para que todos saibam o que eles estão fazendo. Na mesma situação estão aqueles que vão orar nas esquinas ou nas sinagogas em voz alta para serem tidos como pios por seus irmãos. Ou então, jejuar desfigurando o rosto para que os outros não deixem de saber que eles estão observando o preceito do jejum. Tudo que é feito num sentido espiritual deve ser feito no foro íntimo, para Deus e não para os homens. Deus não precisa que a pessoa diga que está fazendo jejum, que está dando esmola, que está orando. Por isso a oração, principalmente, tem que ser feita em segredo.

Com relação à oração, recebemos a belíssima herança de Jesus, o Pai Nosso. Essa oração merece todo um artigo a parte. Aproveito o ensejo para apresentar uma outra versão do Pai Nosso, além daquela que chegou a nós através da bíblia em grego, traduzida para o latim e mais tarde para as línguas ocidentais vivas. Mas existe uma outra versão: a original em aramaico. Não podemos nos esquecer que Jesus pregava em aramaico. Essa versão é como está aqui:

"Fonte da manifestação, Pai-Mãe do Cosmo. Focaliza tua luz dentro de nós, torne-a útil. Estabelece teu reino de unidade agora. Que teu desejo uno atue com os nossos, tanto na plenitude da luz como em todas as formas. Dá-nos o que precisamos cada dia em pão e percepção. Solta as amarras dos erros que nos prendem, na mesma medida em que soltamos os elos que mantemos da culpa dos outros. Não deixe que coisas superficiais nos iludam mas livra-nos de tudo que nos aprisiona. De Ti nasce a Vontade que tudo governa, o Poder e a Vida para realizar a melodia que tudo embeleza e de idade em idade tudo renova. Amém.”

Quando Jesus nos alerta: “Não junteis tesouros na terra”, ele está indicando que devemos procurar os tesouros do céu, os tesouros da alma e não aquilo que é terreno. Essa é uma das muitas passagens da Bíblia que é mal compreendida. Muita gente acha que Jesus estava pregando “façam como as aves do céu e os lírios do campo, não se preocupem em absoluto com a vida no mundo, deixem que Deus dará”.

Mas Deus nos colocou neste mundo com uma série de deveres e obrigações. Devemos agir e Ele nos recompensará de acordo com o nosso esforço. O que Mestre Jesus está chamando a nossa atenção é a questão da ênfase, da prioridade. Será que todos nós, mesmo aspirantes que somos, estamos absolutamente convictos que as prioridades que damos ao nosso tempo, à nossa atenção está de acordo com a nossa aspiração espiritual? Mestre Jesus está chamando exatamente a atenção para isso. Ênfase e prioridade entre as coisas terrenas e as coisas espirituais.

“Guardai-vos dos falsos profetas porque vêem a vós disfarçados de ovelhas mas por dentro são lobos ferozes, pelos seus frutos os conhecereis. Por acaso colhem-se uvas dos espinheiros ou figos dos cardos? Do mesmo modo, toda árvore boa dá bons frutos mas a árvore má dá frutos ruins. Uma árvore boa não pode dar frutos ruins, nem uma árvore má dar bons frutos. Toda árvore que não produz bons frutos é cortada e lançada ao fogo. É pelo seus frutos, portanto, que os reconhecereis”.

Esse é um dos três últimos blocos de ensinamentos que foram mantidos como parte do Sermão da Montanha. Obviamente, Jesus estava chamando a atenção para o perigo, em todas as eras, dos falsos profetas, a terminologia no tempo de Jesus; em nossos tempos seriam os falsos "pastores, bispos, profetas, gurus." Como existem muitos oferecendo-se para ser nossos guias, acenando com iniciações nessa ou naquela técnica espiritual, Jesus nos alerta, pelos frutos os conhecereis. Uma das chaves para reconhecermos os verdadeiros é a pureza de coração. Quem espera ganhar algum benefício, aqueles que pedem uma contribuição para a igreja, uma contribuição para manter o movimento. Alerta! O alarme deve estar soando. Mas, pior ainda, é quando verificamos que a vida desses não reflete aquilo que eles pregam. Demonstram uma atitude de intolerância, de desrespeito ao próximo. Esses, provavelmente são falsos pastores, bispos, profetas, gurus. “Pelos frutos os conhecereis”.

“Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no reino dos céus. Mas, sim, aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos céus”.

Esse é mais um ensinamento em que Jesus faz o contraste, tendo antes chamado nossa atenção para os falsos pastores, profetas, bispos e gurus, agora ele chama a atenção para os falsos discípulos. Esses são os discípulos que vivem da boca para fora, dizendo que não só estão cumprindo os mandamentos, os preceitos, os ensinamentos, mas que têm poderes, que fizeram curas, exorcizaram, que fizeram milagres.
Jesus disse que só aquele que pratica a vontade de seu pai, aquele que já se distanciou do seu pequenino eu, que está inteiramente desapegado e que escuta a voz do silêncio, esse sim é seu discípulo. Nesse caso, também, pelos frutos serão conhecidos. E quem é que precisa conhecer os frutos do discípulo? Somente o Pai celeste que vê em segredo. Portanto, nossas obras não precisam ser reconhecidas externamente pelos outros, ninguém precisa anunciar que fez isso ou fez aquilo.

E finalmente,

“Assim, todo aquele que ouve essas minhas palavras e as põe em prática será comparado a um homem sensato que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, mas ela não caiu, porque estava alicerçada na rocha. Por outro lado, todo aquele que ouve essas minhas palavras, mas não as pratica, será comparado a um homem insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa e ela caiu. E foi grande a sua ruína.”

Nesse caso, tanto o homem sábio como o insensato conheciam os ensinamentos do Mestre Jesus. Qual era a diferença? O insensato conhecia os ensinamentos mas não os cumpria. Os sábios não só conheciam os ensinamentos como os cumpriam. Por isso, quando caiu a chuva, sopraram os ventos e vieram as enxurradas, quando chegaram as provações que todos os discípulos têm que enfrentar, eles não estavam fortalecidos pela prática espiritual e sucumbiram. Essas provações foram representadas nos Evangelhos, pelas tentações do Mestre Jesus no deserto. Até mesmo um discípulo avançado passa por tentações, simbolizadas pelas enxurradas e os ventos.

Aquele que tem sempre os ensinamentos divinos em mente, e procura viver de acordo com eles, tem simbolicamente sua casa alicerçada na rocha. Mas os intelectuais da espiritualidade, que conhecem todos os ensinamentos, que leram um monte de livros, que falam sobre essa e aquela versão do ensinamento, mas demonstram um conhecimento meramente intelectivo, que não entrou no coração, nem se tornou uma expressão de sua vida, esses estão construindo sua casa na areia. E sempre enfrentam a ruína e sempre estão sofrendo. Esse ensinamento é especialmente importante para nós que já lemos muitos livros e ouvimos muitas palestras. Não podemos nos contentar com o mero conhecimento do ensinamento, devemos coloca-lo em prática em nossa vida. Para todo aquele que teve tantas oportunidades de conhecer os ensinamentos de grandes Mestres de diferentes tradições, é especialmente relevante uma outra passagem encontrada mais adiante no Evangelho segundo Mateus, com a qual eu gostaria de concluir.

“A quem muito foi dado, muito será exigido.”

Amém
Raul Branco (editado)